Ela sentiu-se invadida por uma sensação de liberdade que era ampla e esvoaçante. A liberdade, que era uma poça rasa, na qual ela podia deslizar os dedos frágeis. Não, era mais uma lagoa transparente para mergulhar de ponta, do alto da rocha onde até então pendia semi-aflita. A liberdade da vida? Não. Era a liberdade da morte. Porque a vida viera lhe contar que morreria em breve. E agora ela podia arriscar, que tudo era permissivo, que tudo era justificável. Ela já não era corpo, era leve. E tinha um carro, e tinha um apartamento, e tinha essa permissão da vida para ir e vir, entrar ou sair, quando quisesse. Foram abertas tantas portas que não sabia por quais penetrar, de tantas arestas também abertas, e janelas, e buracos de fechaduras. Quando fora jovem, tivera a ousadia de pensar que se lhe fosse dado o presente divino de saber quando a vida se dissiparia, ela iria ligar para todos aqueles que, por algum motivo também divino, haviam se afastado dela, para lhes dizer palavras do seu Mundo. Mas agora assumia uma atitude contemplativa, e não sabia como se colocar diante das pessoas que, desavisadas, agiam como imortais. Tão sóbria que estava, poderia produzir palavras de quem erra ou de quem – divinamente – peca. Coisas, enfim, que os seres humanos estão despreparados para receber. E ainda era cedo para começar a beber. Cedo onde? Existe cedo para quem ouviu da Vida que irá morrer? Não sei; não sabia. Era cedo também para responder. É que a Vida não escolhera um momento para lhe contar; não havia se sentado com ela em um lugar apropriado para chorar – nem lhe oferecera lenço! A vida não tinha exclusividade, era de todos e para todos arde – o que distoa é a intensidade. Quando duas vidas vibram na mesma intensidade, então é paixão. Mas ela não tinha outra parte vibrante. Ela só tinha a Vida, que era Tudo. Alguém que tem tudo, parece incrível mas, alguém que tem tudo sempre precisa de alguma coisa. E ela precisava, agora aflita precisava, e tanto desejava, que se exasperava e esbarrava nos móveis pela casa. Só para ter do que reclamar. Só para expelir um palavrão, qualquer vestígio de imortalidade, de quem desconhece que há de ver beleza em tudo e aproveitar. Mas porque ela tinha hora marcada, resolveu se preparar à maneira mais feminina: no salão de beleza, que era o templo dos imortais. Onde o tempo é só uma questão de espera para ficar mais bonita, e qualquer opacidade pode ser destacada com uma tinta, e o barulho do secador de cabelo, de todos os secadores de cabelo juntos, conjugados ao apogeu das senhoritas empiriquitadas, não permitiu ecoar o grito fundo e enviesado dela, quando a Vida a silenciou.
Porque a Vida avisa. Mas a Morte, não.