quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Os desavisados

Ela sentiu-se invadida por uma sensação de liberdade que era ampla e esvoaçante. A liberdade, que era uma poça rasa, na qual ela podia deslizar os dedos frágeis. Não, era mais uma lagoa transparente para mergulhar de ponta, do alto da rocha onde até então pendia semi-aflita. A liberdade da vida? Não. Era a liberdade da morte. Porque a vida viera lhe contar que morreria em breve. E agora ela podia arriscar, que tudo era permissivo, que tudo era justificável. Ela já não era corpo, era leve. E tinha um carro, e tinha um apartamento, e tinha essa permissão da vida para ir e vir, entrar ou sair, quando quisesse. Foram abertas tantas portas que não sabia por quais penetrar, de tantas arestas também abertas, e janelas, e buracos de fechaduras. Quando fora jovem, tivera a ousadia de pensar que se lhe fosse dado o presente divino de saber quando a vida se dissiparia, ela iria ligar para todos aqueles que, por algum motivo também divino, haviam se afastado dela, para lhes dizer palavras do seu Mundo. Mas agora assumia uma atitude contemplativa, e não sabia como se colocar diante das pessoas que, desavisadas, agiam como imortais. Tão sóbria que estava, poderia produzir palavras de quem erra ou de quem – divinamente – peca. Coisas, enfim, que os seres humanos estão despreparados para receber. E ainda era cedo para começar a beber. Cedo onde? Existe cedo para quem ouviu da Vida que irá morrer? Não sei; não sabia. Era cedo também para responder. É que a Vida não escolhera um momento para lhe contar; não havia se sentado com ela em um lugar apropriado para chorar – nem lhe oferecera lenço! A vida não tinha exclusividade, era de todos e para todos arde – o que distoa é a intensidade. Quando duas vidas vibram na mesma intensidade, então é paixão. Mas ela não tinha outra parte vibrante. Ela só tinha a Vida, que era Tudo. Alguém que tem tudo, parece incrível mas, alguém que tem tudo sempre precisa de alguma coisa. E ela precisava, agora aflita precisava, e tanto desejava, que se exasperava e esbarrava nos móveis pela casa. Só para ter do que reclamar. Só para expelir um palavrão, qualquer vestígio de imortalidade, de quem desconhece que há de ver beleza em tudo e aproveitar. Mas porque ela tinha hora marcada, resolveu se preparar à maneira mais feminina: no salão de beleza, que era o templo dos imortais. Onde o tempo é só uma questão de espera para ficar mais bonita, e qualquer opacidade pode ser destacada com uma tinta, e o barulho do secador de cabelo, de todos os secadores de cabelo juntos, conjugados ao apogeu das senhoritas empiriquitadas, não permitiu ecoar o grito fundo e enviesado dela, quando a Vida a silenciou.

Porque a Vida avisa. Mas a Morte, não.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

aquela velha história

Gostava de assistir aos programas da tarde comendo rosquinhas de polvilho. O sofá, naquele canto direito, que já tinha o peso seu demarcado, ficava espalhado de farelos; incomodava a nora que pedia a toda hora para a Keyte ir limpar. Às cinco horas da tarde, tomava chá e fazia palavras cruzadas, e Miranda tinha que assistir à Malhação num volume tão baixo que deixasse a velha se concentrar, que pelo menos assim ela largava a TV até a novela das seis. Tinha paixão por cantos gregorianos, e os escutava pouco antes de deitar. Para o resto da casa era cedo, cada um metido em seu entretenimento cotidiano, gritava do seu cômodo que era pra ela maneirar; mas ela nem ouvia ou, se ouvia, não obedecia à barulheira e, contente cantando, ria rodopiando a blusa do pijama ainda no cabide. Aos finais de semana, não lhe faltavam convites – todos absurdos para uma senhora daquela idade, parecia até que a queriam ver longe da cidade. Negava todos com uma educação centenária – rara rara! – mas ninguém notava e, se notava, se aborrecia ainda mais: que essa velha tá passada demais, que a cada ano se enrijece na cena. (uma pobre senhora, uma nobre novela, que pena!) O filho bocejava diante da repetição de sua infância a cada visita que lhes chegava, e tinha de ouvir a mesma história das tampinhas de garrafa que ele trocava por soda limonada, das vezes que caíra no fosso atrás da casa (que ele recordava ter sido uma vez só). Depois, a velha nem sabia de mais nada: colocava sal na limonada, deixava transbordar o leite pro café. Ao fim do dia, quando a família chegava em casa, o cachorro havia se soltado da sacada, a empregada girando em curto circuito: assim não dá mais, desse jeito não vai dar. Mas dava. Sempre dava um jeito para se chegar, e consultar se estava tudo bem, se aquele mês ia dar pra pagar, e escorregava uma notinha de cem. Que ela não era senhora de se pendurar nas costas de ninguém. Por isso até que àquela noite, quando eles chegaram, e não havia nada – nadinha mesmo – fora de lugar, a surpresa foi tanta que a casa toda chorou.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

autognose

Eu sei. É insuportável saber. É verdade, não suporto. Sei o tamanho, sei a distância, sei o peso. A largura, eu sei, a densidade, enfim, eu sei. Eu sei! Saber é contraditório. Mergulho profundamente vazia de tudo que me falta saber. Geralmente não compreendo o que sei. Saber é inexato, incoerente, quase absurdo. Sei o que não sei e isso me oprime ao mesmo tempo que me move. Não sou ignorante - não ignoro minha falta de - sei o que eu não sei; apenas me decepciona o quanto ainda me falta para saber. O saber dilata-se a uma frequencia que não consigo acompanhar. À medida que vou sabendo, mais coisas se enfileiram, e se desajeitam, e se desabam para que as saiba. Eu não sei, eu não sei... Eu não sei nada.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

divagar divagar devagarinho


O chiclete me mastiga a boca, tal qual o beijo de despedida me saliva as gengivas. Estou me fumando, e estou quase chapada. Entorpeço-me e interajo com o mundo de uma forma muito doida. Penso que a vida é isso e aquilo outro, depois esqueço e penso que não pensava em nada. Desenho-me no papel: meus olhos são puxados como os de uma japonesa. Minhas mãos tocam meu corpo com o lápis e parecem não me conhecer pois me dão proporções absurdas. Isso demonstra o meu descontrole? Isso demonstra a minha falta de senso crítico, de percepção própria? O batuque que sai dos meus dedos sobre as minhas coxas enquanto estou no ônibus não acompanha o ritmo da música que ouço. Sou desconexa. Meu tempo é atemporal, e estou caindo a 60 quilômetros por hora – mas ainda é alto e ninguém me vê. A queda é ininterrupta. A queda é inesperada. Há anos pratico uma queda quase infinita, porque só conheço o ponto de partida. Caio diagonalmente aos meus anseios – quase posso tocá-los, vez ou outra os agarro, mas se desmancham nuvens entre os meus dedos. Caio desproporcionalmente ao compasso com que os outros caminham. Estou incapacitada e cheia de atitude. Temo que minha vontade extrapole o vazio e transborde – posso parecer louca e a loucura em sociedade é condenável. Estou num beijo. Estou num selo. Estou num posto de gasolina. Colada num poste eu estou, num barquinho de papel, num parque de diversões. Eu sou essa coisa visível e imperceptível. Minha missão é passar despercebida.