quarta-feira, 24 de março de 2010

constatação

Estava sóbria. Caminhava pensativa de si consigo sobre os outros. Então é só isso mesmo: a gente chega aqui, nos 20, nos 30, nos trinques... e ergue a taça da vitória dos erros acumulados que não voltarão a ocorrer. É isso só, a vida, conjunto de situações que servem pra deixá-la mais experiente, dizem, pra não revisitar equívocos. Sorri estridente, mordisca o lábio por dentro, e olha adiante, aberta aos erros inéditos. Toda arreganhada, sem vergonha; vive bêbada.

sexta-feira, 12 de março de 2010

sinto que

Lembro-me de que abrira a porta só pra sentir a respiração do dia. Encontrou silêncios no meu quarto que varreu discretamente para baixo. Você sabe que está ali comigo, você sabe desde o início. Eu disfarço que, bocejante. Como se de mim tranquila, me espreguiço à beira de um sentimento contorcido. Penso que é bom dia: bom dia, amor - não digo. Penso nisso o dia inteiro até dar boa noite, meu bem, estou indo. Compro doces que não dou. Decido que como todos menos um. Enfrento a vitrine da floricultura num shopping. Não sei que flores querem dizer que. Disfarço um presente sem papel, acho mais fácil assim. A entrega não é fácil, nunca foi pra mim. Agora deslizo do sofá para o chão, abraçando. Estou armando um sorriso, talvez desague. Você aguenta. Você aguenta por nós, por dois - você tenta ser mais: eu acolho todos que é. Somos infinitos ali, desfilando corpos conjugados (e espaços em branco que a mente procura ocultar pra nos deixar pensar o que quiser). Eu sou tua, eu sou tua - é meu grito. Mulher! Mulher!

quarta-feira, 10 de março de 2010

sobrou pra mim

Sobrou pra mim. Herança kármica. Ferida pra lamber adoecida por mim. Comprimidos contínuos no pires ao lado da caneca de cidreira. Sobrou pra mim. Um roupeiro, uma cômoda com cupim. Um ventilador que não gira, um aquário sem peixes, um depilador a pilha. Será que eu encontro o que me falta no Móveis Usados? num Sebo, num Secos e Molhados? Será que encontro na ausência o que me completa, esse ai de mim? Até então eu saía das lojas sem comprar - sem me vender; passava os olhos nas vitrines das casas que representavam a família que eu queria ser. Sobrou pra mim. Um gato bordado no pano de louça, uma lã, um fiapo de esperança que espera espera espera... espreguiçando-se do quarto à sala. Um disco do Chico senta e às vezes chora comigo. Um livro do Kundera me concorda e implora por vingança. Mas sou permissiva e aceito o que sobrou pra mim. Uma lanterna, um celular e um laptop. Caso você queira ainda se conectar comigo, ligar pra mim, surgir luz no fim do túnel. Caso realmente tenha sobrado alguma coisa.

quarta-feira, 3 de março de 2010

domésticos

Não demorou para que se descobrissem incompatíveis. Ele, que era todo extrovertido, todo gurizão, todo boa praça. Ela, que era toda de ninguém, toda esticada na dela, toda bichana. Ele, que era todo bicho grilo, todo sem pedigree, na raça, sol-a-sol; Ela, que era toda puro sangue, toda siamesa, sombra e água fresca. Antes era fácil até: somaram-se. Um tinha aquele quê que o outro admirava e queria pra si. Andavam soltos e sorridentes - e embora um do outro caçador, não temiam: encaravam-se, quase desejando os dentes no pescoço. Depois rolavam pelo chão, pelos lençóis, pelo varal – quase voavam, esses animais! Mas de repente, dessa admiração que era de um para o outro, começaram a se sentir grandes. E tão grandes ficaram que o corpo passou a ocupar o espaço que era do outro, e a zombar do que o outro não era, não podia, não sabia. De repente ficou muito engraçado ser tudo aquilo que o outro dizia, e ver que o outro não era nem metade do que esse queria. Esse, que era ela, de vez em quando ele, que intimamente começou a fazer exigências, e trocar o que é pelo que não é, e achar melhor assim; o outro, que era ele, quando nunca ela, que achava que podia receber mais em troca, que já se doara o bastante, que se sentia meio cão sem dono, na sarjeta. E depois, ninguém mais podia chegar perto dos pertences do outro que o outro avançava. Não se podia mais cheirar o pescoço do outro que o outro rosnava. Não se podia mais nem conviver na mesma casa, e por isso os donos - que ávidos assistiam ao desenrolar da novela, e haviam acreditado num final feliz - decidiram se separar. Ela ficou com ele, que não soltava muito pêlo. Ele ficou com ela, que não exigia tanta atenção. E os dois ficaram sozinhos, em kitnets, queixo sobre o parapeito da janela, pensamento pensando: pelo menos eu tenho o meu canto.