terça-feira, 26 de janeiro de 2010

esse cara

Ele vai te levar a lugares lindinhos com vista pro mar, e vai te contar um trecho da infância - se você puder reparar, verá seus olhos brilharem ao falar da avó materna. Depois ele te beija, e te olha te olha te olha, e desvia. Você vai sentir uma coisinha na alma, caindo, sem nome - vai se lembrar disso na hora e assustar-se com a possibilidade; mas antes que tenha medo, ele te abraça, e diz que adora o teu cheiro, o teu cabelo, sei lá, me acalma. Ele vai te ligar no dia seguinte; talvez aguarde até o final da tarde - não se desespere, ele é do tipo que liga, manda mensagem, e-mail comentando sobre aquela banda que, aliás, estará aí, fazendo um show. Ele não vai te convidar, mas preparará todo o cenário pra que você simplesmente diga "vamos", e ele vai com você; conhecer suas amigas, ele vai, se senta, bebe com elas, serão amigas dele. Ele vai dormir na sua casa, levar um dvd, um cd que ele adora, algo pra compartilharem - algo pra ser de vocês. Ele vai embora, mesmo tarde ou cedo, ele sempre vai, e você irá se questionar se é de verdade, e ele irá dar sinais por mensagem de texto. Ele tem um jeito bem interessante de ser carinhoso. E se você souber o seu jogo - como eu estou dizendo - e se seguir com isso em frente, ele vai ser só seu, como ele já foi só meu, e eu vou ficar sozinha, agora, por um tempo, porque ele é insubstituível.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

o plano

Ao girar a maçaneta, abra devagar. A porta irá ranger, e alguém notará sua presença. Entre mesmo assim. Coloque o guarda-chuva no balde que fica ao lado direito da porta, pendure o casaco no cabideiro que está isolado contra a parede, quase de canto. Em dois ou três minutos alguém virá perguntar o que deseja. Se souber, responda - não fará diferença, há uma fila. Talvez sinta-se mais desconfortável sentado num sofá que não tem o seu formato do que em pé, imaginando. Sente-se mesmo assim. Pegue uma revista para ler e finja ter interesse, como se o motivo de ter ido até lá fosse simplesmente pegar aquela - não uma qualquer; aquela - revista para ler. Estará desatualizada e provavelmente você descobrirá, dois anos depois, que a Angelina Jolie acaba de adotar uma criança vietnamita. Não erga as sobrancelhas, não faça do seu rosto um esboço da surpresa. Nem se a Xuxa cantar em trioeletríco, nem se o programa da Hebe sair do ar. Você não está ali para isso, e você sabe - é sempre pior quando se sabe, mas é também um alívio. A tv estará exibindo uma semissenhora que se comunica com um papagaio; ou um mocotó apresentando um video show. Desista. E quando chegar a sua vez, que disserem nome e sobrenome, e você se reconhecer naquilo, levante-se e vá. É inevitável. E você fará isso tantas vezes que logo lhe ocorrerá naturalmente (tão naturalmente que não fará sentido algum uma instrução desta). Neste plano você tem direito a 24 consultas por ano.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

divididos

Sem contar que era incalculável. Romperam de imediato. Melhor parar por aqui enquanto... não sabiam. Ainda hoje ela se questionou se aquele defeito dele teria mesmo atrapalhado a ponto de. Ele já não se pergunta, porque acredita que ela o superou e que a vida continua, bola pra frente, as coisas são assim, melhor não se apegar etc. Na verdade ele não acredita em nada disso. Ele ainda espera que ela telefone; mas tem que partir dela. Mas ela é tão matemática. Soma as semelhanças e se distrai num sinal estranho nas costas dele, na tosse crônica em meio ao filme, no barulho de gato que carrega às vezes na barriga - quando bebe, é só quando bebe. Ela não percebe. Ele não se atreve. A culpa é dos dois. E seguem impunes.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

dar a mão

Espirrou, e logo lhe foi oferecido um lenço. Deixou cair a sombrinha que carregava pendurada à bolsa, e, por coincidência, deixou também cair a bolsa, moedas, a caixa do óculos, duas balinhas. Ele juntou o que era de bolsa, e o que pôde - que não o tornasse feminino - carregou para ela. Não quero mais isso, pensou, mas não informou. Ele era tão educado. Queria ser como ele, um dia. Caminharam arrasados até o carro: ela, porque já sabia e teria que lhe contar; ele, porque desconfiava e queria evitar. Estavam sempre em contato físico: quando sentados frente à frente, braços esticados sobre a mesa, pra alcançar; ou quando, de longe, se espetavam interrogativos num evento: Vamos? E lá iam os dois, por corredores extensos, se esticando: só vou até ali! Como a criança na praia, não iam pro fundo. Só percebeu porque encontrou outro, um dia, passando por ela, pela rua. Queria as mãos livres para abanar.