sexta-feira, 30 de setembro de 2011

mundo cão

Voltava do trabalho. Notei caminhando logo à frente uma mulher aparentemente vestida de capa de chuva. Andava como se lhe aguardasse um compromisso. Era noite e demorou para que eu percebesse, depois de tê-la notado, que a capa preta era na verdade um saco de lixo. Não chovia. Eu caminhava assim, olhando-a sem interesse, quando percebi também que a seguia um cão. Um cão pretinho com patas miúdas, que caminhava como ela, à procura. Apesar do cão estar sem coleira, ela parecia confiar que ele a seguia - ou talvez nem soubesse, talvez não importasse; pode ser. De repente, ocorreu diante dos meus olhos um dilema. Um senhor surgiu da escuridão com um laminado contendo restos de comida - tinha feijão, uns pedaços de carne - mas tão pouco que nem o cão se fartaria. O homem abaixou-se próximo a um poste e estendeu a comida ao cão - a mulher caminhava com o olhar sempre adiante, como se objetivasse algo muito além de alimento ou casa; nem sei se era lúcida, creio que não. Neste momento, o cão miúdo, o cão mixuruquinha, parou de súbito diante da comida, farejando-a ressabiado - sabe-se lá quantas vezes lhe ofereceram algo assim tão de graça, sem um ponta-pé em troca. Mas então o cão olhou para a mulher, olhou com um desespero, sabe? Ela caminhava já a alguns metros de nós - eu desacelerei as passadas para observar a cena, insistindo em meu peito que o cão, pelo amor de Deus, se alimentasse - mas ele ficou olhando para a mulher, olhando para o prato, olhando para a mulher... enfiou a cabeça no laminado, e mastigava com pressa olhando para ela, como que não querendo perdê-la de vista. Eu passei por ele, juro, com vontade de chamá-la, de dizer "este é seu cão!", mas sentindo uma coisa que não sei, aquela coisa que diz "que bobagem, esqueça isso!"; simplesmente entrei em meu prédio. Ao pisar em casa, lembrei do Duque, que me sabia chegando desde o barulho das chaves lá embaixo, e me aguardava sobre o sofá, meio agachado, chamando pra farra. Eu não tenho mais o Duque. Sem me desfazer da mochila, de nada, tornei a fechar a porta e desci as escadas com uma pressa no coração que tinha o compasso dos passos daquela mulher. Saí do prédio em direção ao poste, mas de longe já se via que o cão não estava mais lá. Aproximei-me para me certificar. Realmente, nem sinal do cão. Mas a comida, a comida estava ali no pratinho laminado. Praticamente intacta.


* * *

Mundo Can

Volvía del trabajo. Noté que caminaba delante de mí una mujer aparentemente vestida con una capa para la lluvia. Caminaba como si la esperara un compromiso. Era de noche y pasó tiempo hasta que me di cuenta, después de haberlo notado, que la capa negra era en realidad una bolsa de basura. No llovía. Yo caminaba así, mirándola sin interés, cuando advertí que también la seguía un perro. Un perro negrito con patas menudas, que caminaba como ella, buscando algo. A pesar de que el perro no tenía collar, ella parecía confiar en que la seguía —o quizás ni lo supiera, no importaba; puede ser. De repente, delante de mis ojos sucedió un dilema. Un señor surgió de la oscuridad con un plato laminado que contenía restos de comida —había porotos, unos pedazos de carne— pero tan poco que ni el perro se llenaría. El hombre se agachó cerca del poste y le esparció la comida al perro—la mujer caminaba con la vista siempre adelante, como si su objetivo estuviera mucho más allá de alimento o casa; no sé si estaba lúcida, creo que no. En ese momento, el perro diminuto, el pobre perro, paró inesperadamente frente a la comida, husmeando con recelo —vaya uno a saber cuántas veces le han ofrecido algo gratis y de ese tamaño, sin un puntapié a cambio. Pero entonces el perro miró a la mujer, miró con desesperación, ¿me entiendes? Ella ya caminaba a algunos metros de nosotros — yo desaceleré los pasos para observar la escena, insistiendo dentro de mí para que el perro, por el amor de Dios, se alimentara —pero se quedó mirando a la mujer, mirando el plato, mirando a la mujer… metió la cabeza en el plato, y masticó con prisa mirándola a ella, como quien no quiere perderla de vista. Yo pasé a su lado, lo juro, con ganas de llamarla y decirle “¡Este es su perro!”, pero sintiendo un no sé qué, eso que dice “¡Qué tontería, olvídate de eso!”; simplemente entré a mi edificio. Al pisar mi casa, me acordé de Duque, que sabía cuándo yo llegaba por el ruido de las llaves allá abajo y me esperaba en el sofá, medio agachado, invitándome a hacerle fiesta. No tengo más a Duque. Sin sacarme la mochila ni nada, volví a cerrar la puerta y bajé por la escalera con una prisa en el corazón que tenía el compás de los pasos de la mujer. Salí del edificio en dirección al poste, pero de lejos se veía que el perro ya no estaba más allí. Me acerqué para estar segura. Era verdad; no había ninguna señal del perro. Pero la comida, la comida estaba allí, en el platito laminado. Prácticamente intacta.

Versión en español, por cortesía del amigo Raul Fitipaldi. Traducción: Tali Feld Gleiser.


segunda-feira, 12 de setembro de 2011

um jeito meu de me dar

de repente eu agi como se houvesse uma possibilidade absurda, como se eu quisesse alguma coisa além daqueles olhos ali me olhando; eu, que era tão de mim que vinha sendo, que não levava nada pra casa, assim de graça, nem trazia, nem me permitia emoções que transbordam, que fazem rir doendo, que fazem querer esconder o rosto - sem vergonha. comecei a entregar minhas malas todas a um ser estranho, recém nascido pra mim, recém nascido pro meu mundo, sobre o qual eu havia lido alguma nota de existência anos antes, e que não me chamou atenção, que me passou batido como muitas outras coisas passaram batidas até ali. de repente eu estivesse frágil, diriam, carente? não era carência, não era fragilidade; eu posso afirmar que estava em meu momento fênix, me restabelecendo de uma onda cinza, mas já me sentindo forte, dando braçadas por cima de outra onda de espuma branca, sem pensar em ninguém, sem ter o desejo abstrato do romântico; porque todo o romantismo havia se dissolvido em mim há algum tempo, e eu já estava cansada de forjar maneiras de permitir que ele me arrebatasse novamente; o romantismo estava vencido. as contas de casa, algumas, vencidas. e as relações todas; tudo. então eu encontrei essa reencarnação de alguma possibilidade que não tem nome - veja bem, tente entender minha dificuldade: é tudo muito sem nome, sem adjetivo, é tudo muito atual, no momento da fala - e entreguei aparentemente sem dificuldade quem era eu naquele momento - mesmo que eu não soubesse quem era. Eu fui dando assim, oferecendo, mostrando, como um fornecedor apresenta um catálogo, quase sugerindo as cores. e a pessoa que ouvia, a pessoa que me assistia ali com aqueles olhos que não me conheciam, recebeu aquilo de modo desvalorizado, como se aquilo fosse um costume meu de me dar; não era. e agora eu não sei como eu pego isso tudo de volta.