sexta-feira, 27 de maio de 2011

então era isso

então eu era essa palavra que estavam esperando; talvez um sim ou um não, alguma sentença de alívio, uma decisão depois da decisão. E eu descia os degraus, e subia escalando. Eu estava leve de uma leveza bruta, de uma sensatez estúpida e entorpecida. Eu estava diferente, sendo eu mesma. Daí me confortei com o que eu tinha do que eu não tinha mais, e se queria ainda ou não, era isso que eu tinha, e me aliviava, cada vez mais eu me aliviava, como se tirasse as roupas e as deixasse caídas ao chão; de uma nudez travestida, de uma nudez neon, eu era um sapo, uma princesa, eu era a madrasta, eu era uma porção de personagens cabíveis que não se continham unicamente em mim, e me extravasam, e todo mundo ficava sabendo. fora isso eu não era mais nada.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

a dor perfeita

De novo a dor. Quando ela chega, toda elegante, carregando a frieza como uma mulher de scarpin carrega a sua bolsa, eu finjo que nunca a tinha visto para vê-la enfim despir-se para mim outra vez. Reparo nela como quem aprecia um vinho antes de tomá-lo. Eu a contorno, quase como se a reconhecesse, mas para não desapontá-la, eu me entrego e choro. Penso em quantas vezes a revisitei de ângulos diferentes; às vezes chegava pela direita, às vezes pela esquerda, vinda de leve de cima, por baixo; nunca contudo atingindo o seu centro, nunca conseguindo – ainda buscando – a sua totalidade encarnada; como se fosse eu a adulta e ela a criança, eu tentava me fazer pequena para viver com ela aquele mundo, e fingia que no fundo eu não sabia que ela um dia passaria; que nem ela nem eu – a adulta – éramos permanentes. Eu cultivei a dor enquanto ela brotava porque entendo que ela me situa mais que a alegria. A alegria é uma moleca desvairada que vai pra todos os lados, indecisa e absurda, precisando ter limites e não querendo. A alegria faz eu me sentir injusta com alguém, como quando tomo água da torneira enquanto crianças padecem de sede e em algum lugar do mundo alguém paga cinco euros por ela. Mas a dor está toda aí de graça, e precisa ser valorizada. Chega em silêncio se instalando, e ninguém diz nada; então ela arma um escândalo, derruba muros, se embebeda e atropela; chega em casa tomada de humilhação e revolta, como um filho que volta da escola com o olho roxo; e eu só posso amá-la, vai passar, eu te amo, minha dorzinha. Procuro um cicatrizante pra ela, ela não sabe que está tomando o remédio da sua morte; eu penso em como quero ser alguém legal pro mundo, no quanto posso ainda fazer força, a minha parte; penso em como tudo é perfeito assim, em seu modo de respirar, até os seres sem pulmões, eles também compartilham esse ar, o ar da dor; linda ela, perfeita.


terça-feira, 10 de maio de 2011

carta amiga

Essa é uma vida de possibilidades, e de renúncias. Cada possibilidade, uma renúncia ou mais. A gente parece que nasce sabendo um monte de coisa, e à medida que cresce vai ficando mais estúpida em relação à vida. Não sei. Parece. Aumentam-se os temores. Talvez a dramatização diminua, é. A gente meio que perde a cara de pau pra ser dramática quando alcança os trinta. Eu tô quase lá. De vez em quando rola um draminha. De leve. Tanto que ninguém fica sabendo. Estou cada vez mais sendo de mim; minha boneca. Faço escândalos internos, fico magoada; depois passa. Não sei se contigo é assim. Tu és mais escancarada. Às vezes atrapalhadamente escancarada, porque, claro, é difícil encontrar a medida de ser. Eu sou contraída. Você expansiva. Acho. E invejo isso de uma maneira boa que me faz ser tua amiga, conviver, tentar ser mais - ou menos - alguma coisa. Invejo os que choram pra fora, os que se rasgam, os que se emocionam, apertam, pedem que não se vão, ligam de madrugada, entopem as caixas de mensagem das pessoas; essas pessoas não se torturam. Se soubessem a hora de parar - como eu não sei; já que eu nem chego a dar a partida - seriam tão mais acima dos outros mortais. Não sei por que te falo dessas coisas. Quando eu te conheci, e eu tinha o que, uns 18 anos, primeiro que eu não imaginava continuar tua amiga vendo os trinta chegar - naquela época de "efervescência" a gente não esperava nem o pôr-do-sol junto. Dez anos depois, ainda somos jovens, e já não somos mais. Tenho três sobrinhos, uma afilhada. Fiquei pra titia, nega. Troquei as crônicas do Veríssimo pelos poços profundos do Caio Fernando Abreu; não ouço mais hardcore, mas fiquei pesada. E também comecei a sentir certos arrependimentos. Se eu pudesse voltar atrás uma única vez na vida, não sei se voltava pra barriga da mamãe ou se pro vestibular, a tempo de escolher algo promissor. Fora o desejo de voltar praqueles dias de sol nos bancos da Federal, ou antes: praquelas tardes de domingo tomando banho de mangueira na casa da vó. Sabe, amiga, certas coisas levam anos. E são levadas por eles. Bom que você ficou.