sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

onde significante e significado funcionam juntos

Faz silêncio. Não rima. Linda, mesmo assim; brilha. Parece coisa que se acende na noite; em meu rosto se manifesta - e depois no resto, e fim. Fala mais do que eu. Eu, eu sou silêncio; um poema!, ela diz. Ela diz.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

par

Gosta de mim, eu sei. Eu sou mulher e mulher que sabe dessas coisas, ele diz, e deixa pra mim. Uma única vez, há anos, se passou no vinho, virou pra mim e disse: Mulher, você acha que eu sou feliz assim? Que você é mulher pra mim?, ao que respondi com paciência: É claro. É claro que sim. Eu estava tirando os pratos da mesa. Ele estava sentado, ainda, me olhando admirado; até hoje.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

só por isso

Só porque eram primos, pensou; depois escorregou o olhar para os cantos. E eles foram sempre amigos, não havia razão para nutrir sentimentos egoístas por ele. Por ele, pensou; e depois pensou mais, e nas coisas que fizera por ele: abrir mão da bicicleta mais cara no aniversário para que cada um ganhasse uma e se divertissem os dois; dividir o Trident - que já é tão pequeno!; passar as férias no sítio com a família dele, em vez de praia com a avó materna dela; andar de mãos dadas no shopping a se fingir de namorados para pagar meia no cinema... Agora já não era preciso, e tudo era tão perturbado: ele mediu a aliança de noivado no dedo dela, que, por alguns segundos, quase imaginou. Só porque eram primos, suspirou; e depois escorregou.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

desclassificados

Pensou em recorrer aos classificados, e porque não encontrava pronto algo de que necessitava - e porque não sabia o quê - decidiu-se por expor a si mesma: "Procura-se...". Com um bloco de notas à disposição, meditou longamente sobre o que seria. Concluiu que era alguém, mas de que tipo? Do tipo que ela não era; alguém pra complementar uma parte dela que ela não fosse, por distração ou mera limitação humana. No entanto, incapaz de se decidir sobre uma coisa e outra que quisesse que alguém lhe trouxesse a acrescentar, desistiu do anúncio: estava ela desclassificada. Talvez até já tivesse tido, e perdido, essa coisa que procurava.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

aqui

Vim. Olhei pra trás, fiz-me um convite com as mãos, e vim andando. Aos poucos readquiria intimidade e me tocava por alguns segundos - a sensação era de tocar o mundo. Ainda não me confiava em mim, mas achava graça, e era até bonitinho eu ainda desejar aquelas coisas. De repente, não sei o que deu em mim: eu fechei os olhos, eu abri os olhos, eu olhei ao redor, pra frente, e me perdi. Eu vim, sim, mas me deixei pra trás.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

soluço

Tipo soluço? É, tipo soluço. Começou do nada e do nada parou. Desconheço causa, só consequência. Amargo agora uma secura: a garganta, descosturada, me recrimina - e não sei o que fiz; foi algo que bebi que a ressaca não curou. Enquanto durou, não foi bom nem ruim; foi interessante. Não tive tempo para julgar, definir isso que me ocorria com estranheza; de modo que não sei se ter acabado foi minha salvação ou se me atira às trevas. Há, ainda, a esperança de que recomece quando eu estiver distraída. O problema é que agora eu só penso nisso.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

pequena epifania

Oi, há quanto tempo não nos vemos! Eu poderia ter escrito um e-mail, eu poderia ter visitado seu orkut e deixado um recado, mas só o que fiz foi pensar em você. Todos os dias, quase. Gosto de pensar que estamos conversando, eu te contando coisas minhas, inutilidades cotidianas; boba que sou, imagino a gente andando pela rua, olhando as vitrines, eu te puxando pelo braço em direção à máquina de sorvete italiano, você pede um misto de creme e chocolate, eu de morango, a gente se senta para ficar à vontade, e a tarde não passa, são três horas, a gente queria estar na praia. Quando imagino essas coisas, são quase lembranças. Acho apenas que nos esquecemos. Eu estava indo e você vinha vindo também, daí a gente se perdeu - e até se deu conta, mas fingiu que não; como quem cruza um conhecido na rua e quase não presta atenção: eu vi você e sei que você me viu, e vice-versa, mas a gente seguiu adiante. Porque algumas ações dependem de decisões a serem tomadas em segundos. No segundo seguinte já passamos um pelo outro e voltar atrás esboça um desespero sem cabimento. Aí fica assim, a vida passando, a gente indo, quase se esquecendo do que ia dizendo quando, de repente, um sonha ou escuta ou interage com qualquer recordação saltitante, e percebe que faz tempo e quer entrar em contato. Aparentemente não faz muito sentido para o outro que ainda não estava preparado, que ainda não fora tocado pela sensibilidade da saudade ou qualquer coisa que se chame nesse sentido. Então o outro desconfia, quer saber por que, como, desde quando e não obtém resposta, a gente se afasta de novo, até outra recaída saudosista. Ou futurista: apenas pra te contar que estou partindo, vou morar na Itália... Mas o número mudou, e você não liga; o e-mail retorna, e não se escreve; os conhecidos em comum são completamente estranhos agora, e ninguém mais se entende nem se atende pelo nome. Então estou aqui neste espaço que não é e-mail nem telefone nem convivência, que é um espaço apenas e não se propõe a mais nada além de publicar-me;estou adorando isso porque é como pensar, mas um pensar testemunhado: este documentário é todo o meu silêncio (quem me assiste e me julga, não me interroga porém). E você, como tem passado? Fez um blog também? Eu não te procurei pra dizer essas coisas porque você não se encontra, foi o que sua mãe me disse quando telefonei anonimamente uma única vez, que você não se encontra. Engraçado, sempre achei que você se achava. Caso esteja enganada, ou sua mãe, e você tenha se interessado por realizar o meu singelo sonho de tomar um sorvete numa tarde de sol, aqui estou eu e não estou. Neste espaço, acontecendo, ainda.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

prenúncio

Eu vou morrer. Corro ao espelho e apalpo a face, estarrecida. Estou absurda e desmemoriada. Quase excitada, a Morte, me espreita. Investigativa, a Morte, me assedia. Sou vulnerável, e isso dá medo. Pode ser que ocorra ainda hoje – embora ache pouco provável, sempre acho pouco provável morrer no dia de hoje – e pode ser que seja amanhã, ou daqui a alguns anos, em 2027. De pensar Nela, quase choro. Porque não fiz por merecê-la. Por mérito ou vingança, a Morte não me convém. Talvez não me procure, ainda, eu tenha tempo. Este é seu método de pressão, penetrando-me os minutos como se não existissem e indagando-me sobre o que estou fazendo agora, e o que farei depois, mas o que foi que eu fiz?! A Morte, Pessoa Jurídica, está sempre ligada, sempre logada, always online. Deve andar cheia de post-its, deve usar o outlook, a Morte – senão, como se lembra? Quem sabe é ela que decide a forma, as ferramentas; não apenas hora e lugar. A Morte dispõe de autonomia total, sua única missão é fazer acontecer: não pode a Morte adiar um trabalho eternamente; se estiver cansada, no máximo, deixa para amanhã – teve gente que, como não incomodava, que já estava em coma há anos, esperou mais um pouco. Às vezes coincide de Ela entediar, e improvisar, e pode ser que seja na sua vez – ou na minha, que estou por aqui, por enquanto – e pode ser que, mais tarde, no quarto de hotel, tomando cerveja e comendo amendoins, a Morte, assista ao noticiário de meias, e dê risada. A Morte, de mim, só tem andado distraída. Um dia lhe dá um estalo, e Ela me procura; e se me mudo – e se emudeço mesmo, encolhida embaixo das escadas – Ela me acha. Eu vou morrer, um dia, eu vou morrer. É esta certeza que me mata.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

ausência

Sentir nas pontas dos dedos a ausência, é possível? Perfeitamente. É uma pergunta? Verdadeiro. Gesto de deslizar digitais. Pode estar no odor, essa ausência. Pode estar no vapor da pele, no espelho do roupeiro que registra a cena da cama. A cama. Que concentra um corpo só, parece aberta. Aguarda, uma tranquilidade, irrequieta. Contempla teto; paredes não falam – duvido que ouçam. Escute o que eu digo: o silêncio é mortífero, ao coração; não sei, não; o silêncio me atrai; depois mata. A sede. Parece que é sempre de madrugada; que nada, são seis da manhã! acorda, dei folga pra empregada! Meu vício é limpar os cantos, que cada canto tem a sua coisa; esta lá, entalada, esperando por dizer. Um dia vem à tona toda sujeira do tapete. Eu passo por cima; não quero nem saber; já vou logo avisando. Que é pra não haver mal entendido. Eu não prometi nada. Nem acreditei em nada. E agora sou, sozinha.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

ponto preciso

Trazia um livro, as mãos. Cumprimentou o moço porque o moço era bonito; fosse homem só, nem tinha visto. Então era tudo dúbio: a vida nem sempre um risco, nem sempre um traço unindo dois pontos - o tempo é interjeição. Mesmo quando desperdício. Mesmo quando sopra em qualquer direção. Girando a biruta. Girando a biruta. Não sei se sul, se sobe ou desce. Aqui. Por favor, pare aqui. Por favor, preciso. Este é meu ponto.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Os desavisados

Ela sentiu-se invadida por uma sensação de liberdade que era ampla e esvoaçante. A liberdade, que era uma poça rasa, na qual ela podia deslizar os dedos frágeis. Não, era mais uma lagoa transparente para mergulhar de ponta, do alto da rocha onde até então pendia semi-aflita. A liberdade da vida? Não. Era a liberdade da morte. Porque a vida viera lhe contar que morreria em breve. E agora ela podia arriscar, que tudo era permissivo, que tudo era justificável. Ela já não era corpo, era leve. E tinha um carro, e tinha um apartamento, e tinha essa permissão da vida para ir e vir, entrar ou sair, quando quisesse. Foram abertas tantas portas que não sabia por quais penetrar, de tantas arestas também abertas, e janelas, e buracos de fechaduras. Quando fora jovem, tivera a ousadia de pensar que se lhe fosse dado o presente divino de saber quando a vida se dissiparia, ela iria ligar para todos aqueles que, por algum motivo também divino, haviam se afastado dela, para lhes dizer palavras do seu Mundo. Mas agora assumia uma atitude contemplativa, e não sabia como se colocar diante das pessoas que, desavisadas, agiam como imortais. Tão sóbria que estava, poderia produzir palavras de quem erra ou de quem – divinamente – peca. Coisas, enfim, que os seres humanos estão despreparados para receber. E ainda era cedo para começar a beber. Cedo onde? Existe cedo para quem ouviu da Vida que irá morrer? Não sei; não sabia. Era cedo também para responder. É que a Vida não escolhera um momento para lhe contar; não havia se sentado com ela em um lugar apropriado para chorar – nem lhe oferecera lenço! A vida não tinha exclusividade, era de todos e para todos arde – o que distoa é a intensidade. Quando duas vidas vibram na mesma intensidade, então é paixão. Mas ela não tinha outra parte vibrante. Ela só tinha a Vida, que era Tudo. Alguém que tem tudo, parece incrível mas, alguém que tem tudo sempre precisa de alguma coisa. E ela precisava, agora aflita precisava, e tanto desejava, que se exasperava e esbarrava nos móveis pela casa. Só para ter do que reclamar. Só para expelir um palavrão, qualquer vestígio de imortalidade, de quem desconhece que há de ver beleza em tudo e aproveitar. Mas porque ela tinha hora marcada, resolveu se preparar à maneira mais feminina: no salão de beleza, que era o templo dos imortais. Onde o tempo é só uma questão de espera para ficar mais bonita, e qualquer opacidade pode ser destacada com uma tinta, e o barulho do secador de cabelo, de todos os secadores de cabelo juntos, conjugados ao apogeu das senhoritas empiriquitadas, não permitiu ecoar o grito fundo e enviesado dela, quando a Vida a silenciou.

Porque a Vida avisa. Mas a Morte, não.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

aquela velha história

Gostava de assistir aos programas da tarde comendo rosquinhas de polvilho. O sofá, naquele canto direito, que já tinha o peso seu demarcado, ficava espalhado de farelos; incomodava a nora que pedia a toda hora para a Keyte ir limpar. Às cinco horas da tarde, tomava chá e fazia palavras cruzadas, e Miranda tinha que assistir à Malhação num volume tão baixo que deixasse a velha se concentrar, que pelo menos assim ela largava a TV até a novela das seis. Tinha paixão por cantos gregorianos, e os escutava pouco antes de deitar. Para o resto da casa era cedo, cada um metido em seu entretenimento cotidiano, gritava do seu cômodo que era pra ela maneirar; mas ela nem ouvia ou, se ouvia, não obedecia à barulheira e, contente cantando, ria rodopiando a blusa do pijama ainda no cabide. Aos finais de semana, não lhe faltavam convites – todos absurdos para uma senhora daquela idade, parecia até que a queriam ver longe da cidade. Negava todos com uma educação centenária – rara rara! – mas ninguém notava e, se notava, se aborrecia ainda mais: que essa velha tá passada demais, que a cada ano se enrijece na cena. (uma pobre senhora, uma nobre novela, que pena!) O filho bocejava diante da repetição de sua infância a cada visita que lhes chegava, e tinha de ouvir a mesma história das tampinhas de garrafa que ele trocava por soda limonada, das vezes que caíra no fosso atrás da casa (que ele recordava ter sido uma vez só). Depois, a velha nem sabia de mais nada: colocava sal na limonada, deixava transbordar o leite pro café. Ao fim do dia, quando a família chegava em casa, o cachorro havia se soltado da sacada, a empregada girando em curto circuito: assim não dá mais, desse jeito não vai dar. Mas dava. Sempre dava um jeito para se chegar, e consultar se estava tudo bem, se aquele mês ia dar pra pagar, e escorregava uma notinha de cem. Que ela não era senhora de se pendurar nas costas de ninguém. Por isso até que àquela noite, quando eles chegaram, e não havia nada – nadinha mesmo – fora de lugar, a surpresa foi tanta que a casa toda chorou.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

autognose

Eu sei. É insuportável saber. É verdade, não suporto. Sei o tamanho, sei a distância, sei o peso. A largura, eu sei, a densidade, enfim, eu sei. Eu sei! Saber é contraditório. Mergulho profundamente vazia de tudo que me falta saber. Geralmente não compreendo o que sei. Saber é inexato, incoerente, quase absurdo. Sei o que não sei e isso me oprime ao mesmo tempo que me move. Não sou ignorante - não ignoro minha falta de - sei o que eu não sei; apenas me decepciona o quanto ainda me falta para saber. O saber dilata-se a uma frequencia que não consigo acompanhar. À medida que vou sabendo, mais coisas se enfileiram, e se desajeitam, e se desabam para que as saiba. Eu não sei, eu não sei... Eu não sei nada.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

divagar divagar devagarinho


O chiclete me mastiga a boca, tal qual o beijo de despedida me saliva as gengivas. Estou me fumando, e estou quase chapada. Entorpeço-me e interajo com o mundo de uma forma muito doida. Penso que a vida é isso e aquilo outro, depois esqueço e penso que não pensava em nada. Desenho-me no papel: meus olhos são puxados como os de uma japonesa. Minhas mãos tocam meu corpo com o lápis e parecem não me conhecer pois me dão proporções absurdas. Isso demonstra o meu descontrole? Isso demonstra a minha falta de senso crítico, de percepção própria? O batuque que sai dos meus dedos sobre as minhas coxas enquanto estou no ônibus não acompanha o ritmo da música que ouço. Sou desconexa. Meu tempo é atemporal, e estou caindo a 60 quilômetros por hora – mas ainda é alto e ninguém me vê. A queda é ininterrupta. A queda é inesperada. Há anos pratico uma queda quase infinita, porque só conheço o ponto de partida. Caio diagonalmente aos meus anseios – quase posso tocá-los, vez ou outra os agarro, mas se desmancham nuvens entre os meus dedos. Caio desproporcionalmente ao compasso com que os outros caminham. Estou incapacitada e cheia de atitude. Temo que minha vontade extrapole o vazio e transborde – posso parecer louca e a loucura em sociedade é condenável. Estou num beijo. Estou num selo. Estou num posto de gasolina. Colada num poste eu estou, num barquinho de papel, num parque de diversões. Eu sou essa coisa visível e imperceptível. Minha missão é passar despercebida.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

menino levado

Quando ele chegou em casa, assim que chegou em casa, eu disse a ele que aquela seria a última vez, que não iria mais tolerar; que não queria, que não podia, que não conseguia e não iria suportar. Me debrucei com ele sobre as gavetas, e fui tirando inteiras pra fora, e fui espalhando meias pelo chão. Ele levou um susto. Ele levou um tapa. Ele levou as bermudas, as gravatas, as calças largas. Levou do banheiro a loção pós-barba, o xampu anticaspa, as cuecas penduradas. Levou o Rexona, o Azzaro, o remédio para curar a cachaça. Levou da sala as estantes de livros, os DVDs, os não-sei-o-quê da Adminstração; levou o Playstation, o aparelho de som. Levou tomadas e carrapichos, comida enlatada e garrafas pet. Ele levou uma palmada e teve de levar uma pomada, e separou alguns cotonetes. Levou a carteira, o cartão de crédito; a credencial que tinha ele levou. As contas pra pagar, levou algumas; as passagens aéreas, o veículo terrestre, até o aquário levou. O lustra móveis teve de levar, umas roupas sujas pra depois lavar, umas cifras de música pra tirar no violão. Foi andando pela casa e levando as coisas, arrastando os móveis, abrindo portas, deixando voar pela janela. Levou minha fé e a vontade de crer nela. Levou meu café, meu sono, meu cão sem dono. Levou e foi levado – foi realmente um menino levado. Levou-me os cílios num piscar de olhos, as barbas de molho; o meu perdão ele levou também. Só ficou um filho.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

de liberação

Tenho me concentrado na fundura da desconcentração. Tenho estado alheia às coisas que me cercam por estar profundamente tomada por elas. Como num sonho, em que ignoro parte do sonho e a outra parte não compreendo; e faço tantas perguntas que acabo não chegando a uma conclusão, porque nada é coerente. A vida é uma insuficiência infinita. É uma busca absurda e incessante. Estou, tal como a vida – e justamente ajustada a ela – estou pleonástica, hiperbólica e redundante. Eventualmente me surpreendo e rio comigo, mas é quase raro. Meu sorriso é raso como o resto do café que permanece na xícara até secar e enrijecer-se negro. Sou extra forte e aromática. Passeando pelos postes, pelas casas, pelos cachorros e pessoas que se arrastam. Eu sou isso que me largo e me apanho antes de cair. Não me permito amadurecer, estou sempre querendo me consumir. É um cedo tardio. É uma tarde ansiosa. Parece que chego antes da hora ou que perdi alguma coisa que era fundamental ao raciocínio lógico. Meu cálculo é absurdo. Quanto me subtraio ao final do dia ao lavar a louça! Quebro as alças das canecas, perco uma lasca do prato, entorto colheres tentando abrir potes de conserva. Tenho estado assim, perecível. Parece que vou morrer amanhã e preciso acontecer com urgência. Mas cadê o botão? Onde eu aperto? Estou comprimida. Estou cumprindo tarefas de outro para tentar atingir minhas metas. Que não sei onde as pus. Que não encontro senão quando estou indo dormir, e aí perco o sono querendo convencê-las de que são só minhas. Quando vencida me entrego ao sono, aquela coisa pensada se dissolve num bocejo e escorre feito baba. É uma repugnância: esses planos convexos, essa arquitetura envaidecida, esses projetos espetaculares de vida... para que um outro contemple, faça uns remendos e diga que é seu (e me faça acreditar nisso até mais do que eu, para abrir mão deles como se não os reconhecesse meus). Tenho estado assim, com as pernas dormentes, sem poder me mexer. Repouso dois dedos sobre o punho e não acredito em minha pulsação. Estou tão viva! Estou tão ativa! Como posso permitir que uma espera me contenha? Não, eu vou me liberar dessa missão. Vou me desarmar, me mandar pra casa, ver se eu tô lá na esquina, se faço verão. Preciso de foco, preciso de lentes, de contato com a civilização. Amparada pelos meus anseios, sou o pássaro de asas coloridas que empoleira-se na árvore sem encantar turistas. Preciso mostrar que belos são. Atingir a vida com o meu olhar e registrar, decodificar, produzir e me tornar esse mundo de coisas que eu quero ser para o mundo. Preciso é de precisão.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O imperfeito do indicativo

Havia um olhar ausente. Havia um tempo que transitava entre ser, estar, permanecer, continuar... e não se alterava. Havia um pretexto para mastigar a hora - a carne fria que repousa sobre o prato com a farofa. Havia um outono, e na lembrança um verão. Havia uma insensatez coerente, uma determinação a quase nada, um impulso contido de pulverizar. Havia uma carta não escrita no colo, um suco pela metade no copo, o cheiro de alguma coisa queimando. Havia meias espalhadas, um moletom do avesso, e sobre a cama havia (apenas) um corpo. Um incenso e um cigarro. Uma picada de mosquito e um cravo. Havia aparelhos retirados das tomadas, toalhas secando na varanda, e no banheiro um perfume de lavanda – um tapete, uma gilete, uma descarga. Havia uns planos, uns panos de chão. Um boato, um beijo de lado, uma abolição. Havia uns pratos sujos e um enjôo. Dois papagaios mudos e um estouro. Alguma coisa se quebrando havia - um susto, uma suspeita, um senão. Havia um contrário – do sim, da cura, daquele. Havia um estopim e um início. Uma casa de dois quartos e um edifício. Um estresse, um flashback, um gold fish - uma fisgada.
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Havia a ausência, enfim. Mas fora isso, não havia nada.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

conto de cacos

Tenho a impressão de ter sofrido um grave acidente há alguns anos. Sinto que pequenos cacos de vidro estão ainda sendo expelidos da minha pele. Quando penso estar recuperada e sorrio, se passo as mãos em meu rosto, percebo nele pontos agudos, saltando-me de dentro. Por serem transparentes, ninguém observa. Mas a mim não podem passar imperceptíveis; me castigam. Às vezes, o desespero de me ver livre deles, me põe a esfregar o rosto, e deslizar as unhas, espremendo-o exasperada. Depois me deixo sangrar, e dou uma gargalhada aliviada. Esses pontos cristalizados sou eu me extravasando. Alguma coisa dentro de mim deve ter se partido, e ainda não cicatrizou. Está subcutaneamente inflamada. Já tentei produtos que fazem descascar a pele, e isso não trouxe os cacos à tona. Já espalhei cremes hidratantes, indicados por variados especialistas, mas ninguém parece entender o meu caso. Eu sou minha única salvação. Eu me compreendo e tenho complacência. Estou me curando constantemente. Vivo a me sabotar, a me encruzilhar, a testar minha capacidade de abstração. Se me distraio, me firo. Se me interrogo, me choco. Tenho estado assim, chocada. Esperando-me nascer. O que será que me aguardo? Que espera absurda me concentra? Estou focada, mas minhas lentes concêntricas embaçam diante da visão exacerbada da realidade. É que me dou conta de que não estou no centro. Sou periférica e inescrutável. Às vezes transbordo, mas quase sempre estou boiando. Planejo minha própria extorsão. Usurpo-me com frequência, tentando persuadir-me de que sou coisa outra. Tenho até uma identidade, números que me são determinantes embora não me revelem. Eu não os escolhi. E se tivesse sido me dada a chance de escolher? Eu me designaria em 5, 8, 2, 9, 0. Não saberia me ordenar. Eu não me obedeço, porque sei que não me condeno. Minha única punição tem esse aspecto de caco de vidro e é de mim expelida como um martírio, cuja dor é pungente, mas não me domina. Estou aberta à dor. Deixo-a entrar, revirar, procurar em mim o que quiser, e sair sem levar-me nada. Meu culto é meu sacrifício, e meu sacrifício é minha libertação.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

REVISTA CULT

momento merchan


Tem texto meu na última Cult (n. 138).
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- O INTANGÍVEL -
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Procure na banca mais próxima!

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segunda-feira, 10 de agosto de 2009

porta afora

Eu tenho um problema com chaves. Sempre que tranco a porta de casa, coloco as chaves na bolsa, sendo que em seguida tenho que retirá-las novamente para destrancar o portão da rua. Faço isso também na garagem, que se atreve ao excesso de cautela de possuir uma porta chaveada entre o elevador e meu carro. Desligo o carro, coloco o chaveiro na bolsa, caminho até a porta... e aí se agrava o problema: destaco a chave errada. Com frequencia me engano sobre qual é a chave certa. Como se não abrisse as mesmas portas todos os dias. Como se o segredo se transformasse com a mesma rapidez que meu pensamento sobre as coisas. Deixo as chaves na casa dos outros - e para suas portas, minhas chaves são inúteis. Perco as chaves na rua - elas encontram novas portas, eu providencio novas chaves. Esqueço onde as coloquei, e fico perdida diante de uma liberdade prisioneira, sem saber se vou e ou se fico. Confundo as minhas chaves com outras chaves, confundo as minhas portas com outras portas; deixo minhas gavetas abertas. Não espio pelo buraco da fechadura de ninguém, e coloco nos meus buracos bolinhas de papel barrando a intervenção alheia. Sou cheia de trancas, cheia de segredos, cheia de senhas para decorar e esquecer. Eventualmente me conduzo com as chaves trocadas, com o segredo exposto, com as senhas erradas. Nessas ocasiões me liberto. Lembro-me de um dia ter saído de casa e encontrado um chaveiro pendurado em um galho de árvore. Alguma pessoa encontrara as chaves erradas e deixara exposta a fragilidade daquele que, distraidamente, perdera as suas. O chaveiro era muito bonito. Quase tive um atrevimento. Mas o meu chaveiro já é parte das minhas chaves que são parte das minhas fechaduras que são parte dos meus pertences. Oh Deus, como posso ser tão insolente, expondo num chaveiro luminoso toda a minha possessividade? Eu tenho esse problema com chaves. Acho que sou uma pessoa trancada. Estas coisas que escrevo são meu vestígio.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

aquela coisa

Sinto que eu deveria estar num local onde não estou, que eu deveria estar fazendo uma coisa outra; que existo deslocada, mas que não foi sempre assim. Em que trecho do caminho - ou do caderno - me perdi? E se aconteceu de ser assim, não era pra ser? Perdi-me completamente ou fui me deixando aos poucos, como a areia que escorre da caçamba de um caminhão? Às vezes, antes de adormecer, me vem uma indagação aguda, parece espetar-me de fora pra dentro. Essa pergunta peralta lembra-me a mim mesma quando criança, nas manhãs de sábado, querendo ver a vida: A-COR-DA! A-COR-DA! A-COR-DA! Agora eu me confesso com uma corda no pescoço e um baquinho azul sob os pés. Mas não vou me matar, e eu sei que é só uma ameaça - por isso às vezes me ignoro. Sei que não vou daqui-ali sem mim. Sou de mim tão dependente que não saberia me abandonar. Vou lutar por nossa vida até o fim. Eu sou a minha vitória.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Subjetiva

Parece haver sempre uma linha imprevisível a me separar do meu objetivo. E junto dela me aparece uma placa embaralhando-me os sentidos e me fazendo duvidar daquilo que até então era o meu objetivo. Parece até que o objetivo se move! Que eu estava indo naquela direção, e que de repente ele não estava mais lá, e eu olhei em volta e o vi mais à esquerda. Então, tenho que fazer toda uma manobra para me redirecionar e prosseguir, mas quando me dou conta do quanto já andei, percebo que meu objetivo está novamente deslocado. Será que ele muda? Não muda. Meu objetivo é mudo e imutável. Caminha calado, desvia o olhar. Introspectivo. Meu objetivo não é projeção minha: já existia antes de mim, eu só o incorporei a um desejo meu. Quando me aproximo dele, temo que alcançá-lo me torne novamente uma pessoa sozinha e sem objetivo, então eu nos saboto para adiar ao máximo o nosso encontro. Eu e meu objetivo nos amamos.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Desenterrando caixas

Ela andou desenterrando algumas caixas. Ela estava bem; esteve trabalhando, conhecendo gente e assistindo a filmes. Um deles era sobre enterros, e ela andou desenterrando algumas caixas.

Em todas elas havia uma coisa sua que julgava esquecida, e tinha a ver com aquele filme. Eram imagens deslocadas no tempo, que traduziam um sentimento agora verdadeiro. Fora necessário o distanciamento. Fora preciso jogar um pouco de areia sobre aquelas coisas que estavam expostas em demasia. Era uma extravagância só, era uma euforia pública. Então, ela as enterrara, mas havia deixado sobre elas um sinal. Por isso sempre soube o que significavam, mesmo ignorando-as lá.

Ela desenterrou algumas caixas, olhou atentamente amando-as; tratando a si com benevolência e cumplicidade. Um momento de amor de si, sem julgamentos. Como um gato que se mantém fiel à casa, aquelas coisas suas haviam permanecido lá.

Houve silêncio. Houve conversa. Houve confronto de ideias remotas e atuais. Em algum momento se coincidiram, se corresponderam, mas depois se viu que eram predominantemente conflitantes, e que havia um motivo para tanto: a mente permanecera operante, enquanto as ideias permaneceram lá.

Por alguns instantes, ela sentiu-se em um dilema. Não sabia como lidar com todas aquelas coisas que trouxera à tona. Então achou que algumas poderiam servir ao coração, que outras poderiam adaptar-se à mente, e o restante devolveu às caixas e as enterrou de volta lá.

Pelo menos até o próximo filme. Ou até a próxima música. Até vazar.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

"Drawing Hands" de M. C. Escher. Litogravura.


Eu sou essa pergunta. Também não sei da intenção ou do motivo em que me debruço quando me ponho a preencher esta página com linhas de improbabilidade. Não há porta a se abrir nem janelas nem transparência alguma. É claustrofóbico sentir. Amontoa-se nuvem por dentro da gente e se amua num canto, feito criança carente à espera de colo. Não chora. Não, meu sentimento não sofre. Quem sofre sou eu, que não sei em que diretório encontra-se nesse sistema virtual de emoções. Quem sabe seja ilusório pensar que essas coisas que sinto são apenas coisas que passam pela minha cabeça, isto é, que sejam coisas. Quem sabe haja um motivo para esta reflexão. Quem saberá? Quem é esse que pergunta, ou que gera tantas perguntas e em seguida se omite na inexatidão? O dono da questão não sou eu. O receptor da mensagem não é você. Explicações não são respostas. Eu sou essa pergunta.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Queda, 1997. Mario Pacheco - Xilogravura.


Onde reside o prazer senão no atrevimento? Embrenhar-se no desconhecido quente, no gélido estado de não saber; permitir-se: eu topo, eu encaro. Mas nesse estado se está subindo, e não enxerga-se na subida a altura do penhasco; se há um abismo – às vezes é certo que vem uma descida, ou mesmo uma planície – geralmente é um abismo e aí, aí ninguém quer topar mais nada, se não há no que se agarrar, muitas vezes o que se decide é um salto, e não se percebe. Desistir de saltar pode ser o maior salto já ousado. Desistir de seguir é tão ousado quanto ir, simplesmente ir...

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Quando pensei este blog, não havia em meus planos falar-lhes diretamente. Não havia um plano, apenas uma idéia esvoaçada de que postaria algumas coisas. Mas logo em seguida, cobraram-me participação nos concursos literários, e eu percebi que era chegada a hora. Porém, na maioria deles, há obrigatoriedade de ineditismo para participar, e eu não tenho assim uma obra tão vasta para abraçar tudo e ainda criar postagens. Por isso, confesso agora, que boa parte dos textos aqui postados já não era inédita. É isso mesmo: se vocês são meu concurso, e se esperavam de mim o ineditismo, terei de ser desclassificada. Não posso comprometer-me agora com tantas exigências; simplesmente porque não posso exigir de mim textos que me satisfaçam, quando no fundo sei que estão sob encomenda. Encomendados com tema livre, é claro, mas ainda assim presos a uma finalidade; atrelados a um objetivo que é meu, não deles. Não é justo comigo nem justo com eles, nem tampouco é justo com o leitor, que não quer passar por aqui e ler qualquer cuspe literário meu.

Então, onde quero chegar? não enxergo o que há pela frente, e portanto não posso escolher que lugar, dentre aqueles, quero chegar. Por ora, digo apenas que devo continuar postando. Que ontem à noite eu escrevi quatro contos seguidos, e gostei de todos - e, claro, isso foi ontem. E que me perdoem se sentirem que não estou dando tudo de mim. É que não estou mesmo conseguindo juntar esse tudo de mim para espalhar por aqui. Ainda estou me pensando.

(e talvez eu nunca esteja pronta)

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Um desespero só

Para justificar a sede. Cobraram-se retorno urgente. Despediram-se ofegantes como se corressem – em direções diversas (e era quase sempre um adeus). Para não prejudicar ninguém, impediram-se – e depois se lamentaram em silêncio. Porque em silêncio também pediam com urgência um retorno, mas ninguém atendia. Poucos compreendem que há perguntas que não chegam a se pronunciar, embora se mantenham pendidas como à beira de uma janela no décimo segundo andar. E se ignorarmos as perguntas, e se não fornecermos as respostas? Não é necessário pensar sobre isso, as perguntas estão todas por aí, acontecendo diariamente, tal como as respostas. O complicado é colhê-las. Difícil é uni-las, saber que resposta corresponde a que pergunta. Quando o diálogo se desenrola naturalmente, não é necessário esforço para que a mensagem seja transmitida. Mas no caso deles, naquele caso que era entre eles, qualquer coisa enviada com destinatário seria prova de um delito previsto em lei – que lei era aquela? O que poderia ela diante da lei que era deles? Não sabiam. E se acovardavam em descobrir. Talvez revelasse um não-sonho, talvez a lei lhes dissesse que nada poderia fazer para impedi-los, talvez fosse realmente complacente. Mas a lei deles era proibida; essa lei que era deles era de uma cumplicidade, era de uma significância imprevista e delicada, que urgia discrição. Senão não seria aquela coisa que era só deles; seria apenas mais uma lei em meio a todas as leis operantes no universo – e é provável que com o tempo caísse em desuso, até que, dali a algumas décadas, alguém fosse dar por ela, e indagasse um estudioso, e ele respondesse com desprezo que aquilo ali não valia há muito tempo. Porque tem coisas que há muito tempo deixaram de existir, mas estão arquivadas. Como os dois fizeram um do outro, mantendo seus registros intimamente, como se deles pudessem se desfazer um dia, quando a caixa estivesse cheia, e fosse preciso esvaziar-se da vida inútil – dessa vida que se passa paralelamente a que se vive. Até que ele olhou pra si. E ela olhou pra ele – porque ela ainda o enxergava de vez em quando, embora ele não a visse há muito tempo – e os dois perceberam que estava pesado demais, que já não podiam aguardar tanta espera – o que antes era coleção, agora é lixo; porque nunca chegou a completar o álbum, e perdeu o sentido do anseio. E de se olharem assim, um pra dentro, outro pra fora, e de perceberem que não dava mais, ele tentou ligar pra ela, mas o número dela havia sido desativado, ela estava morando ninguém sabia direito onde, nem desde quando, disseram até que andara se casando; e ela tentou escrever para ele, mas aconselharam que não o fizesse, que ele já tinha alguém que o tornava sereno, que o que ela lhe proporcionava – que, aliás, era mútuo – era uma inquietude agora inconcebível, que já tinham trinta anos, e casa pra manter, conta pra pagar, e o que a família iria pensar disso? Porque havia a lei, e enquanto apenas desejassem, não seria delito algum, porque não transpareciam, porque não havia urgência nos gestos cotidianos em que trabalhavam as mãos. Havia sim um desanimo; uma ameaça tediosa e maçante que os rodeava, e sentava sobre eles enquanto trabalhavam, e escalava seus ombros enrijecendo-os, e entupia suas narinas, saindo por seus olhos, impregnando em suas roupas, esticando-se sobre suas camas, até ocupar o espaço de um corpo.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Retrato de Família

O vento sul suspira mudanças.
Creio que seja cedo ainda, e ainda ontem
avistei tempestades em cachoeiras;
pequenas chamas em brasa ardente.

(talvez esta não seja minha família)
Olho para ele e o indago, o persigo.
Dói desabotoar a camisa, dói
fazer o próprio café? Há noites
eu não faço mais que fechar os olhos
- e as pernas. Há noites contemplo jantares,
colunas sociais; protagonizo a agonia
de desfilar seminua, semiesposa, semialgumacoisa.

Quando varro a casa é quando
tenho paz. No entanto, no instante
em que as chaves se movimentam,
eu me tranco lesma, eu me fecho intensa
gosma de encolher marido.

O bebê banaliza o berço.
O bebê é nosso. É teu e meu.
Nasceu quando? Antes de haver
nós embaraçados, e me recitavas
versos com a palavra "flâmula".

(perigoso estilete cortou-me as partes)

Agora ando pendendo para um dos lados.
Nenhum dos dois me conhece, porém.
E há sempre um terceiro que diz...

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Depois de ler Alice Ruiz

Imagem de Maíra Soares
Coquetel de lançamento de XXI POETAS DE HOJE EM DIA(NTE)

Se você me deixar
vai ser uma pena
leve leve a flutuar
sem ponto
nem vírgula
nem nada
que...
se é pra zoar,
eu quebro tudo com um poema
de enlouquecer bicho-grilo;
se é pra fazer um bicho
de sete cabeças,
eu escrevo outras dezessete linhas
para ver se entra
em uma dessas
essa coisa que te amo
e é só minha

terça-feira, 16 de junho de 2009

Elogio à Ética

Você veio me dizer de forma toda poética que o seu maior prazer era admirar a minha estética. Eu confesso não ter entendido absolutamente nada da sua profética, mas mulher tem sexto sentido, e eu te falei de maneira sintética que jamais sairia contigo. Eis que então você me demitiu por injusta causa e eu, me enchendo de raiva, para não te mandar àquele lugar, decidi me posicionar. Consultei um dicionário para enriquecer o meu vocabulário e te contra-argumentar – galanteador feito um canário, mas tão ofensivo e ordinário. Agora, escuta aqui, sua anta patética, antes de se gabar da sua hermética, você deve respeitar suas funcionárias frenéticas, que tanto trabalham em seu lugar. Enquanto você viaja pelas europas e soviéticas, a gente está lá no escritório, fazendo o quê? É notório: estamos cibernéticas de tanto digitar, formatar, editar, ocultar e se desculpar por você – percebe-se pela minha aparência esquelética. E o senhor tem coragem de me colocar na rua, depois de elogiar minha estrutura atlética? Depois de insinuar querer me ver nua? É muita falta de censura! E nem estou analisando faixa etária – até porque sou bem eclética – mas, cá entre nós, com essa sua urticária, nem se eu fosse uma doida epilética! Mas veja bem, argumento e não perco a compostura – você diz que mulher é muito histérica. E vou além: lembro-me também de ouvi-lo criticar a minha aferética, me subjugar, me caracterizar de aérea. Agora, se me permite retrucar, eu te convido a analisar as coisas de maneira mais eidética – não, não é doença venérea. E para finalizar dialética: vou embora, sim, mas sem me envergonhar. Ao menos a mim não falta ética.

domingo, 7 de junho de 2009

Obrigado, meu amor!

“Oi... Eu tô ligando para te agradecer... Como pelo quê? Por tudo... Quê?... Sim, mas me deixe concluir, mulher!... Claro, claro que estou ligando pra pessoa certa... Sim, é o Valdir! E eu, Valdir, quero te agradecer por tudo o que você fez por mim. Mas como foi muita coisa, vou ter de listar:

1º Obrigado por entrar na minha vida no momento mais inoportuno, me fazendo entender que meu casamento já havia morrido há anos – e me ajudando a enterrá-lo de vez;

2º Obrigado por se instalar em minha casa logo na primeira semana, reorganizar minhas gavetas de modo que eu não encontrasse mais nada, me ajudando no processo de separação da outra mulher - que deixei, claro, só porque já não sentia o mesmo por ela.

3º Obrigado por me ajudar com as compras do supermercado, com meu novo visual – embora me sinta um punk aos 40 – com minha conta bancária – tenho certeza de que você me endividou para me ajudar a enfrentar meu medo de aceitar riscos;

4º Obrigado por me fazer compreender os signos e seus decanatos. Graças a você, estou sabendo que nossas Luas não se cruzam, nossos ascendentes compartiham defeitos e nossos signos são de elementos contrários;

5º Obrigado por me comprar um cachorro. e já agradeço também por ter colaborado para a minha descoberta de que sou alérgico a pêlos de cocker. Mas que cãozinho atencioso aquele, é um "reloginho";

6º Obrigado pelos bolsos, carteiras, gavetas e móveis revistados. Hoje em dia sinto-me, além de organizado, um homem precavido;

7º Obrigado pelos absorventes, de vários modelos e tamanhos, que você esqueceu em meu banheiro junto da sua escova de dentes. Nunca se sabe quando vamos precisar emprestar essas coisas a alguém;

8º Obrigado pela atenção infinita e dedicada ao longo desse efêmero envolvimento; a necessidade de me possuir com exclusividade constante e integral; o desejo de me cobrir de beijos em um dia e de ausência no outro; a compreensão de que sou vinte anos mais velho que você, mas que com certeza poderíamos passar uma semana em Ibiza; o tato para lidar com o fato de que tenho filhos da sua idade – levando-os para sair todas as sextas e me convidando a buscá-los ligeiramente alcoolizados (os três);

9º Obrigado pelos planos que fizemos juntos, os sonhos que sonhamos, os projetos de vida que idealizamos. Se eu encontrar outra pessoa, nesses anos de vida que me restam, talvez dê tempo de pegar tudo isso emprestado e tentar realizar com essa pessoa;

10º Mas principalmente muito, muito obrigado pelo filho. O filho que você deixou tão cautelosamente em nosso quarto, dormindo abraçado em teu pijama. O filho que eu nem sei como se chama, e por isso batizei de Jesus – “Pobrezinho, nasceu em Belém...”. O filho que não é meu. Obrigado.

Quê?... Eu não terminei. Acho muito clichê terminar no décimo item... Mas é claro que tem mais coisa: é que eu não tenho certeza do bairro em que você se encontra, mas conheço a localidade. Então... obrigado. Obrigado por ir à puta que pariu!”
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Crônica é destaque no http://www.desacato.info/, e recebe inclusive uma versão em espanhol por Raúl Fitipaldi, da América Latina Palavra Viva.