segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O Cara

O cara acendeu um cigarro. O cara acendeu um cigarro e jogou qualquer coisa fora. "Qualquer coisa" não porque fosse uma coisa qualquer, mas porque de onde eu estava não podia saber. O cara jogou o corpo pra trás no banco de madeira e deixou-se escorregar, penso, pra fumar com tranquilidade - até então o cara tava puto ou alguma coisa assim. As pessoas do lado do cara começaram a fungar e fazer cena de que não suportavam cigarro, ou fumantes - o que dá quase no mesmo embora o segundo caso seja mais grave, um tipo xenofobia. O cara olha pro cara da moto, os dois se engasgam, e o cara da moto quase atropela um cachorro. O cara fica puto. Não porque goste de animais, ele não tem a menor cara. Não sei por que então. Uma mãe passa o filho pro outro lado por causa do cigarro - ou do cara. Vai passando o tempo assim, essa tensão, esse thriller; daí então chega o ônibus, o cara se levanta assim, cheio de dominância; o cara vai andando em direção ao motorista, espera todos entrarem - não por educação, mas por privacidade que quer ter ali, na hora; nem pensa - e pergunta - cigarro nos lábios, olhos piscando na fumaça: "Esse ônibus aí... passa lá na Rua das Margaridas?". O motorista olha pra ele e bufa num riso; abana a cabeça negativamente. "O ônibus que passa lá fica na plataforma B." O cara passa o antebraço na testa pra secar, olha pra tal plataforma B, olha pro motorista. Ônibus ligado, fábrica de ar quente. "Aquele ônibus é muito caro", pensa o cara. "Duas quadras é quase nada", diz o cara. O cara apaga o cigarro com o pé direito, solta a fumaça e entra no ônibus. Lá dentro, ninguém mais repara nele; uns de fone de ouvido, outros conversando com os que estão em pé. Ninguém desconfia, mas ele é O Cara.

7 comentários:

Alvarêz Dewïzqe disse...

E é assim, as pessoas estão muito ocupadas em odiar, em não gostar do próximo, então quando ele joga o cigarro fora acaba perdendo importância.

Muito bom.

Lê Fernands disse...

vemos esse roteiro todos os dias, ao montes. são tantos, amontoados e costumeiros que não mais recebem nossa atenção. não percebemos, não sinaliazamos, os outros, porque nós também somos O Cara!


=)


aplaudo de pé teu texto.
agradeço a visita ao benditas, seja sempre bem vinda.

gde abç.

Jorge Pimenta disse...

o cara. o "gajo", em bom português de portugal... anónimo, igual a tantos outros. apenas o cigarro e os seus malabarismos de fumo o tornaram distinto... mesmo que pelos piores motivos... ainda que por breves instantes...
beijo!

Priscila disse...

exato, Jorge.

Eduardo Trindade disse...

Olá!
Muito bom! Passando aqui por acaso, adorei tua maneira de construir a cena, teu estilo de escrever como quem conduz o leitor pela mão, diretamente, até chegar com ele ao sentido desejado.
Parabéns!

Carla Diacov disse...

você é o cara!

rsrsrs...
o duro é que é!


beijinhos!


(onde acho teu livro pra surrupiar em SP?)

Rubens da Cunha disse...

na verdade somos todos meio "o cara" :) abraços saudosos