segunda-feira, 31 de agosto de 2009

menino levado

Quando ele chegou em casa, assim que chegou em casa, eu disse a ele que aquela seria a última vez, que não iria mais tolerar; que não queria, que não podia, que não conseguia e não iria suportar. Me debrucei com ele sobre as gavetas, e fui tirando inteiras pra fora, e fui espalhando meias pelo chão. Ele levou um susto. Ele levou um tapa. Ele levou as bermudas, as gravatas, as calças largas. Levou do banheiro a loção pós-barba, o xampu anticaspa, as cuecas penduradas. Levou o Rexona, o Azzaro, o remédio para curar a cachaça. Levou da sala as estantes de livros, os DVDs, os não-sei-o-quê da Adminstração; levou o Playstation, o aparelho de som. Levou tomadas e carrapichos, comida enlatada e garrafas pet. Ele levou uma palmada e teve de levar uma pomada, e separou alguns cotonetes. Levou a carteira, o cartão de crédito; a credencial que tinha ele levou. As contas pra pagar, levou algumas; as passagens aéreas, o veículo terrestre, até o aquário levou. O lustra móveis teve de levar, umas roupas sujas pra depois lavar, umas cifras de música pra tirar no violão. Foi andando pela casa e levando as coisas, arrastando os móveis, abrindo portas, deixando voar pela janela. Levou minha fé e a vontade de crer nela. Levou meu café, meu sono, meu cão sem dono. Levou e foi levado – foi realmente um menino levado. Levou-me os cílios num piscar de olhos, as barbas de molho; o meu perdão ele levou também. Só ficou um filho.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

de liberação

Tenho me concentrado na fundura da desconcentração. Tenho estado alheia às coisas que me cercam por estar profundamente tomada por elas. Como num sonho, em que ignoro parte do sonho e a outra parte não compreendo; e faço tantas perguntas que acabo não chegando a uma conclusão, porque nada é coerente. A vida é uma insuficiência infinita. É uma busca absurda e incessante. Estou, tal como a vida – e justamente ajustada a ela – estou pleonástica, hiperbólica e redundante. Eventualmente me surpreendo e rio comigo, mas é quase raro. Meu sorriso é raso como o resto do café que permanece na xícara até secar e enrijecer-se negro. Sou extra forte e aromática. Passeando pelos postes, pelas casas, pelos cachorros e pessoas que se arrastam. Eu sou isso que me largo e me apanho antes de cair. Não me permito amadurecer, estou sempre querendo me consumir. É um cedo tardio. É uma tarde ansiosa. Parece que chego antes da hora ou que perdi alguma coisa que era fundamental ao raciocínio lógico. Meu cálculo é absurdo. Quanto me subtraio ao final do dia ao lavar a louça! Quebro as alças das canecas, perco uma lasca do prato, entorto colheres tentando abrir potes de conserva. Tenho estado assim, perecível. Parece que vou morrer amanhã e preciso acontecer com urgência. Mas cadê o botão? Onde eu aperto? Estou comprimida. Estou cumprindo tarefas de outro para tentar atingir minhas metas. Que não sei onde as pus. Que não encontro senão quando estou indo dormir, e aí perco o sono querendo convencê-las de que são só minhas. Quando vencida me entrego ao sono, aquela coisa pensada se dissolve num bocejo e escorre feito baba. É uma repugnância: esses planos convexos, essa arquitetura envaidecida, esses projetos espetaculares de vida... para que um outro contemple, faça uns remendos e diga que é seu (e me faça acreditar nisso até mais do que eu, para abrir mão deles como se não os reconhecesse meus). Tenho estado assim, com as pernas dormentes, sem poder me mexer. Repouso dois dedos sobre o punho e não acredito em minha pulsação. Estou tão viva! Estou tão ativa! Como posso permitir que uma espera me contenha? Não, eu vou me liberar dessa missão. Vou me desarmar, me mandar pra casa, ver se eu tô lá na esquina, se faço verão. Preciso de foco, preciso de lentes, de contato com a civilização. Amparada pelos meus anseios, sou o pássaro de asas coloridas que empoleira-se na árvore sem encantar turistas. Preciso mostrar que belos são. Atingir a vida com o meu olhar e registrar, decodificar, produzir e me tornar esse mundo de coisas que eu quero ser para o mundo. Preciso é de precisão.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O imperfeito do indicativo

Havia um olhar ausente. Havia um tempo que transitava entre ser, estar, permanecer, continuar... e não se alterava. Havia um pretexto para mastigar a hora - a carne fria que repousa sobre o prato com a farofa. Havia um outono, e na lembrança um verão. Havia uma insensatez coerente, uma determinação a quase nada, um impulso contido de pulverizar. Havia uma carta não escrita no colo, um suco pela metade no copo, o cheiro de alguma coisa queimando. Havia meias espalhadas, um moletom do avesso, e sobre a cama havia (apenas) um corpo. Um incenso e um cigarro. Uma picada de mosquito e um cravo. Havia aparelhos retirados das tomadas, toalhas secando na varanda, e no banheiro um perfume de lavanda – um tapete, uma gilete, uma descarga. Havia uns planos, uns panos de chão. Um boato, um beijo de lado, uma abolição. Havia uns pratos sujos e um enjôo. Dois papagaios mudos e um estouro. Alguma coisa se quebrando havia - um susto, uma suspeita, um senão. Havia um contrário – do sim, da cura, daquele. Havia um estopim e um início. Uma casa de dois quartos e um edifício. Um estresse, um flashback, um gold fish - uma fisgada.
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Havia a ausência, enfim. Mas fora isso, não havia nada.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

conto de cacos

Tenho a impressão de ter sofrido um grave acidente há alguns anos. Sinto que pequenos cacos de vidro estão ainda sendo expelidos da minha pele. Quando penso estar recuperada e sorrio, se passo as mãos em meu rosto, percebo nele pontos agudos, saltando-me de dentro. Por serem transparentes, ninguém observa. Mas a mim não podem passar imperceptíveis; me castigam. Às vezes, o desespero de me ver livre deles, me põe a esfregar o rosto, e deslizar as unhas, espremendo-o exasperada. Depois me deixo sangrar, e dou uma gargalhada aliviada. Esses pontos cristalizados sou eu me extravasando. Alguma coisa dentro de mim deve ter se partido, e ainda não cicatrizou. Está subcutaneamente inflamada. Já tentei produtos que fazem descascar a pele, e isso não trouxe os cacos à tona. Já espalhei cremes hidratantes, indicados por variados especialistas, mas ninguém parece entender o meu caso. Eu sou minha única salvação. Eu me compreendo e tenho complacência. Estou me curando constantemente. Vivo a me sabotar, a me encruzilhar, a testar minha capacidade de abstração. Se me distraio, me firo. Se me interrogo, me choco. Tenho estado assim, chocada. Esperando-me nascer. O que será que me aguardo? Que espera absurda me concentra? Estou focada, mas minhas lentes concêntricas embaçam diante da visão exacerbada da realidade. É que me dou conta de que não estou no centro. Sou periférica e inescrutável. Às vezes transbordo, mas quase sempre estou boiando. Planejo minha própria extorsão. Usurpo-me com frequência, tentando persuadir-me de que sou coisa outra. Tenho até uma identidade, números que me são determinantes embora não me revelem. Eu não os escolhi. E se tivesse sido me dada a chance de escolher? Eu me designaria em 5, 8, 2, 9, 0. Não saberia me ordenar. Eu não me obedeço, porque sei que não me condeno. Minha única punição tem esse aspecto de caco de vidro e é de mim expelida como um martírio, cuja dor é pungente, mas não me domina. Estou aberta à dor. Deixo-a entrar, revirar, procurar em mim o que quiser, e sair sem levar-me nada. Meu culto é meu sacrifício, e meu sacrifício é minha libertação.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

REVISTA CULT

momento merchan


Tem texto meu na última Cult (n. 138).
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- O INTANGÍVEL -
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Procure na banca mais próxima!

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segunda-feira, 10 de agosto de 2009

porta afora

Eu tenho um problema com chaves. Sempre que tranco a porta de casa, coloco as chaves na bolsa, sendo que em seguida tenho que retirá-las novamente para destrancar o portão da rua. Faço isso também na garagem, que se atreve ao excesso de cautela de possuir uma porta chaveada entre o elevador e meu carro. Desligo o carro, coloco o chaveiro na bolsa, caminho até a porta... e aí se agrava o problema: destaco a chave errada. Com frequencia me engano sobre qual é a chave certa. Como se não abrisse as mesmas portas todos os dias. Como se o segredo se transformasse com a mesma rapidez que meu pensamento sobre as coisas. Deixo as chaves na casa dos outros - e para suas portas, minhas chaves são inúteis. Perco as chaves na rua - elas encontram novas portas, eu providencio novas chaves. Esqueço onde as coloquei, e fico perdida diante de uma liberdade prisioneira, sem saber se vou e ou se fico. Confundo as minhas chaves com outras chaves, confundo as minhas portas com outras portas; deixo minhas gavetas abertas. Não espio pelo buraco da fechadura de ninguém, e coloco nos meus buracos bolinhas de papel barrando a intervenção alheia. Sou cheia de trancas, cheia de segredos, cheia de senhas para decorar e esquecer. Eventualmente me conduzo com as chaves trocadas, com o segredo exposto, com as senhas erradas. Nessas ocasiões me liberto. Lembro-me de um dia ter saído de casa e encontrado um chaveiro pendurado em um galho de árvore. Alguma pessoa encontrara as chaves erradas e deixara exposta a fragilidade daquele que, distraidamente, perdera as suas. O chaveiro era muito bonito. Quase tive um atrevimento. Mas o meu chaveiro já é parte das minhas chaves que são parte das minhas fechaduras que são parte dos meus pertences. Oh Deus, como posso ser tão insolente, expondo num chaveiro luminoso toda a minha possessividade? Eu tenho esse problema com chaves. Acho que sou uma pessoa trancada. Estas coisas que escrevo são meu vestígio.