quinta-feira, 30 de julho de 2009

aquela coisa

Sinto que eu deveria estar num local onde não estou, que eu deveria estar fazendo uma coisa outra; que existo deslocada, mas que não foi sempre assim. Em que trecho do caminho - ou do caderno - me perdi? E se aconteceu de ser assim, não era pra ser? Perdi-me completamente ou fui me deixando aos poucos, como a areia que escorre da caçamba de um caminhão? Às vezes, antes de adormecer, me vem uma indagação aguda, parece espetar-me de fora pra dentro. Essa pergunta peralta lembra-me a mim mesma quando criança, nas manhãs de sábado, querendo ver a vida: A-COR-DA! A-COR-DA! A-COR-DA! Agora eu me confesso com uma corda no pescoço e um baquinho azul sob os pés. Mas não vou me matar, e eu sei que é só uma ameaça - por isso às vezes me ignoro. Sei que não vou daqui-ali sem mim. Sou de mim tão dependente que não saberia me abandonar. Vou lutar por nossa vida até o fim. Eu sou a minha vitória.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Subjetiva

Parece haver sempre uma linha imprevisível a me separar do meu objetivo. E junto dela me aparece uma placa embaralhando-me os sentidos e me fazendo duvidar daquilo que até então era o meu objetivo. Parece até que o objetivo se move! Que eu estava indo naquela direção, e que de repente ele não estava mais lá, e eu olhei em volta e o vi mais à esquerda. Então, tenho que fazer toda uma manobra para me redirecionar e prosseguir, mas quando me dou conta do quanto já andei, percebo que meu objetivo está novamente deslocado. Será que ele muda? Não muda. Meu objetivo é mudo e imutável. Caminha calado, desvia o olhar. Introspectivo. Meu objetivo não é projeção minha: já existia antes de mim, eu só o incorporei a um desejo meu. Quando me aproximo dele, temo que alcançá-lo me torne novamente uma pessoa sozinha e sem objetivo, então eu nos saboto para adiar ao máximo o nosso encontro. Eu e meu objetivo nos amamos.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Desenterrando caixas

Ela andou desenterrando algumas caixas. Ela estava bem; esteve trabalhando, conhecendo gente e assistindo a filmes. Um deles era sobre enterros, e ela andou desenterrando algumas caixas.

Em todas elas havia uma coisa sua que julgava esquecida, e tinha a ver com aquele filme. Eram imagens deslocadas no tempo, que traduziam um sentimento agora verdadeiro. Fora necessário o distanciamento. Fora preciso jogar um pouco de areia sobre aquelas coisas que estavam expostas em demasia. Era uma extravagância só, era uma euforia pública. Então, ela as enterrara, mas havia deixado sobre elas um sinal. Por isso sempre soube o que significavam, mesmo ignorando-as lá.

Ela desenterrou algumas caixas, olhou atentamente amando-as; tratando a si com benevolência e cumplicidade. Um momento de amor de si, sem julgamentos. Como um gato que se mantém fiel à casa, aquelas coisas suas haviam permanecido lá.

Houve silêncio. Houve conversa. Houve confronto de ideias remotas e atuais. Em algum momento se coincidiram, se corresponderam, mas depois se viu que eram predominantemente conflitantes, e que havia um motivo para tanto: a mente permanecera operante, enquanto as ideias permaneceram lá.

Por alguns instantes, ela sentiu-se em um dilema. Não sabia como lidar com todas aquelas coisas que trouxera à tona. Então achou que algumas poderiam servir ao coração, que outras poderiam adaptar-se à mente, e o restante devolveu às caixas e as enterrou de volta lá.

Pelo menos até o próximo filme. Ou até a próxima música. Até vazar.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

"Drawing Hands" de M. C. Escher. Litogravura.


Eu sou essa pergunta. Também não sei da intenção ou do motivo em que me debruço quando me ponho a preencher esta página com linhas de improbabilidade. Não há porta a se abrir nem janelas nem transparência alguma. É claustrofóbico sentir. Amontoa-se nuvem por dentro da gente e se amua num canto, feito criança carente à espera de colo. Não chora. Não, meu sentimento não sofre. Quem sofre sou eu, que não sei em que diretório encontra-se nesse sistema virtual de emoções. Quem sabe seja ilusório pensar que essas coisas que sinto são apenas coisas que passam pela minha cabeça, isto é, que sejam coisas. Quem sabe haja um motivo para esta reflexão. Quem saberá? Quem é esse que pergunta, ou que gera tantas perguntas e em seguida se omite na inexatidão? O dono da questão não sou eu. O receptor da mensagem não é você. Explicações não são respostas. Eu sou essa pergunta.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Queda, 1997. Mario Pacheco - Xilogravura.


Onde reside o prazer senão no atrevimento? Embrenhar-se no desconhecido quente, no gélido estado de não saber; permitir-se: eu topo, eu encaro. Mas nesse estado se está subindo, e não enxerga-se na subida a altura do penhasco; se há um abismo – às vezes é certo que vem uma descida, ou mesmo uma planície – geralmente é um abismo e aí, aí ninguém quer topar mais nada, se não há no que se agarrar, muitas vezes o que se decide é um salto, e não se percebe. Desistir de saltar pode ser o maior salto já ousado. Desistir de seguir é tão ousado quanto ir, simplesmente ir...

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Quando pensei este blog, não havia em meus planos falar-lhes diretamente. Não havia um plano, apenas uma idéia esvoaçada de que postaria algumas coisas. Mas logo em seguida, cobraram-me participação nos concursos literários, e eu percebi que era chegada a hora. Porém, na maioria deles, há obrigatoriedade de ineditismo para participar, e eu não tenho assim uma obra tão vasta para abraçar tudo e ainda criar postagens. Por isso, confesso agora, que boa parte dos textos aqui postados já não era inédita. É isso mesmo: se vocês são meu concurso, e se esperavam de mim o ineditismo, terei de ser desclassificada. Não posso comprometer-me agora com tantas exigências; simplesmente porque não posso exigir de mim textos que me satisfaçam, quando no fundo sei que estão sob encomenda. Encomendados com tema livre, é claro, mas ainda assim presos a uma finalidade; atrelados a um objetivo que é meu, não deles. Não é justo comigo nem justo com eles, nem tampouco é justo com o leitor, que não quer passar por aqui e ler qualquer cuspe literário meu.

Então, onde quero chegar? não enxergo o que há pela frente, e portanto não posso escolher que lugar, dentre aqueles, quero chegar. Por ora, digo apenas que devo continuar postando. Que ontem à noite eu escrevi quatro contos seguidos, e gostei de todos - e, claro, isso foi ontem. E que me perdoem se sentirem que não estou dando tudo de mim. É que não estou mesmo conseguindo juntar esse tudo de mim para espalhar por aqui. Ainda estou me pensando.

(e talvez eu nunca esteja pronta)

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Um desespero só

Para justificar a sede. Cobraram-se retorno urgente. Despediram-se ofegantes como se corressem – em direções diversas (e era quase sempre um adeus). Para não prejudicar ninguém, impediram-se – e depois se lamentaram em silêncio. Porque em silêncio também pediam com urgência um retorno, mas ninguém atendia. Poucos compreendem que há perguntas que não chegam a se pronunciar, embora se mantenham pendidas como à beira de uma janela no décimo segundo andar. E se ignorarmos as perguntas, e se não fornecermos as respostas? Não é necessário pensar sobre isso, as perguntas estão todas por aí, acontecendo diariamente, tal como as respostas. O complicado é colhê-las. Difícil é uni-las, saber que resposta corresponde a que pergunta. Quando o diálogo se desenrola naturalmente, não é necessário esforço para que a mensagem seja transmitida. Mas no caso deles, naquele caso que era entre eles, qualquer coisa enviada com destinatário seria prova de um delito previsto em lei – que lei era aquela? O que poderia ela diante da lei que era deles? Não sabiam. E se acovardavam em descobrir. Talvez revelasse um não-sonho, talvez a lei lhes dissesse que nada poderia fazer para impedi-los, talvez fosse realmente complacente. Mas a lei deles era proibida; essa lei que era deles era de uma cumplicidade, era de uma significância imprevista e delicada, que urgia discrição. Senão não seria aquela coisa que era só deles; seria apenas mais uma lei em meio a todas as leis operantes no universo – e é provável que com o tempo caísse em desuso, até que, dali a algumas décadas, alguém fosse dar por ela, e indagasse um estudioso, e ele respondesse com desprezo que aquilo ali não valia há muito tempo. Porque tem coisas que há muito tempo deixaram de existir, mas estão arquivadas. Como os dois fizeram um do outro, mantendo seus registros intimamente, como se deles pudessem se desfazer um dia, quando a caixa estivesse cheia, e fosse preciso esvaziar-se da vida inútil – dessa vida que se passa paralelamente a que se vive. Até que ele olhou pra si. E ela olhou pra ele – porque ela ainda o enxergava de vez em quando, embora ele não a visse há muito tempo – e os dois perceberam que estava pesado demais, que já não podiam aguardar tanta espera – o que antes era coleção, agora é lixo; porque nunca chegou a completar o álbum, e perdeu o sentido do anseio. E de se olharem assim, um pra dentro, outro pra fora, e de perceberem que não dava mais, ele tentou ligar pra ela, mas o número dela havia sido desativado, ela estava morando ninguém sabia direito onde, nem desde quando, disseram até que andara se casando; e ela tentou escrever para ele, mas aconselharam que não o fizesse, que ele já tinha alguém que o tornava sereno, que o que ela lhe proporcionava – que, aliás, era mútuo – era uma inquietude agora inconcebível, que já tinham trinta anos, e casa pra manter, conta pra pagar, e o que a família iria pensar disso? Porque havia a lei, e enquanto apenas desejassem, não seria delito algum, porque não transpareciam, porque não havia urgência nos gestos cotidianos em que trabalhavam as mãos. Havia sim um desanimo; uma ameaça tediosa e maçante que os rodeava, e sentava sobre eles enquanto trabalhavam, e escalava seus ombros enrijecendo-os, e entupia suas narinas, saindo por seus olhos, impregnando em suas roupas, esticando-se sobre suas camas, até ocupar o espaço de um corpo.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Retrato de Família

O vento sul suspira mudanças.
Creio que seja cedo ainda, e ainda ontem
avistei tempestades em cachoeiras;
pequenas chamas em brasa ardente.

(talvez esta não seja minha família)
Olho para ele e o indago, o persigo.
Dói desabotoar a camisa, dói
fazer o próprio café? Há noites
eu não faço mais que fechar os olhos
- e as pernas. Há noites contemplo jantares,
colunas sociais; protagonizo a agonia
de desfilar seminua, semiesposa, semialgumacoisa.

Quando varro a casa é quando
tenho paz. No entanto, no instante
em que as chaves se movimentam,
eu me tranco lesma, eu me fecho intensa
gosma de encolher marido.

O bebê banaliza o berço.
O bebê é nosso. É teu e meu.
Nasceu quando? Antes de haver
nós embaraçados, e me recitavas
versos com a palavra "flâmula".

(perigoso estilete cortou-me as partes)

Agora ando pendendo para um dos lados.
Nenhum dos dois me conhece, porém.
E há sempre um terceiro que diz...