quinta-feira, 19 de maio de 2011

a dor perfeita

De novo a dor. Quando ela chega, toda elegante, carregando a frieza como uma mulher de scarpin carrega a sua bolsa, eu finjo que nunca a tinha visto para vê-la enfim despir-se para mim outra vez. Reparo nela como quem aprecia um vinho antes de tomá-lo. Eu a contorno, quase como se a reconhecesse, mas para não desapontá-la, eu me entrego e choro. Penso em quantas vezes a revisitei de ângulos diferentes; às vezes chegava pela direita, às vezes pela esquerda, vinda de leve de cima, por baixo; nunca contudo atingindo o seu centro, nunca conseguindo – ainda buscando – a sua totalidade encarnada; como se fosse eu a adulta e ela a criança, eu tentava me fazer pequena para viver com ela aquele mundo, e fingia que no fundo eu não sabia que ela um dia passaria; que nem ela nem eu – a adulta – éramos permanentes. Eu cultivei a dor enquanto ela brotava porque entendo que ela me situa mais que a alegria. A alegria é uma moleca desvairada que vai pra todos os lados, indecisa e absurda, precisando ter limites e não querendo. A alegria faz eu me sentir injusta com alguém, como quando tomo água da torneira enquanto crianças padecem de sede e em algum lugar do mundo alguém paga cinco euros por ela. Mas a dor está toda aí de graça, e precisa ser valorizada. Chega em silêncio se instalando, e ninguém diz nada; então ela arma um escândalo, derruba muros, se embebeda e atropela; chega em casa tomada de humilhação e revolta, como um filho que volta da escola com o olho roxo; e eu só posso amá-la, vai passar, eu te amo, minha dorzinha. Procuro um cicatrizante pra ela, ela não sabe que está tomando o remédio da sua morte; eu penso em como quero ser alguém legal pro mundo, no quanto posso ainda fazer força, a minha parte; penso em como tudo é perfeito assim, em seu modo de respirar, até os seres sem pulmões, eles também compartilham esse ar, o ar da dor; linda ela, perfeita.


14 comentários:

Ana Andreolli disse...

eu sou sua fã. nao tem oq dizer =O

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Biange disse...

Me fez estremecer ...

Cynthia Lopes disse...

nossa Pri,
me assustei com esta dor!
bjs

Anônimo disse...

apaixonante.

diga x disse...

amiga, que saudade de vc!
bjão
xley
serra, ES

rachelbona disse...

Rachel Bona

Gostei...

O Neto do Herculano disse...

Como diria Leminski, um homem com uma dor é muito mais elegante.

Loba disse...

nunca imaginei que fosse gostar tanto de dor! :)
menina, vc tem textos maravilhossos aqui. há mais de dois dias estou no seu blog, acredita? vc escreve maravilhosamente. ganhou mais uma fã, com certeza!
beijocas

Alvarêz Dewïzqe disse...

Priscila, de uma sensibilidade que dói. Sei que comparações as vezes não são exatamente o que queremos ouvir, mas me lembrou as fazes mais comoventes de Charles Bukowski. Muito bom, muito mesmo.

Priscila Lopes disse...

Ok, mas comparações desse nível são muito bem vindas - embora essa lembrança, eu saiba, é assim de longe, muito longe...






agradeço a todos os que me escrevem, me falam, me acompanham; agradecerei sempre. essa eternidade eu posso prometer.

marlene edir severino disse...

Intensos também na dor.

É preciso.

Um beijo!

* A Praia Brava a que refiro é esta aqui bem próxima de minha casa,em Itajaí. Conhece?

Parabéns também pra ti: estamos todos no Prêmio Canon de Poesia.
Viva!

Unknown disse...

Gostei! Abraços cannnonianos.

Ico disse...

Precioso texto, ciertamente el dolor nos sitúa en el mundo. Nos hacemos su amiga, nos dejamos quere por él, como si fuese una piel más que nos habita.
un saludo