quarta-feira, 10 de março de 2010

sobrou pra mim

Sobrou pra mim. Herança kármica. Ferida pra lamber adoecida por mim. Comprimidos contínuos no pires ao lado da caneca de cidreira. Sobrou pra mim. Um roupeiro, uma cômoda com cupim. Um ventilador que não gira, um aquário sem peixes, um depilador a pilha. Será que eu encontro o que me falta no Móveis Usados? num Sebo, num Secos e Molhados? Será que encontro na ausência o que me completa, esse ai de mim? Até então eu saía das lojas sem comprar - sem me vender; passava os olhos nas vitrines das casas que representavam a família que eu queria ser. Sobrou pra mim. Um gato bordado no pano de louça, uma lã, um fiapo de esperança que espera espera espera... espreguiçando-se do quarto à sala. Um disco do Chico senta e às vezes chora comigo. Um livro do Kundera me concorda e implora por vingança. Mas sou permissiva e aceito o que sobrou pra mim. Uma lanterna, um celular e um laptop. Caso você queira ainda se conectar comigo, ligar pra mim, surgir luz no fim do túnel. Caso realmente tenha sobrado alguma coisa.

8 comentários:

Sidnei Olivio disse...

A sua singeleza em dizer as coisas, transforma o texto numa perfeição lapidada. Gostei muito Priscila. Beijo.

Breve Leonardo disse...

[quando o mundo parece terminar no fundo, na estreita beira do telhado dum hotel desocupado, num salto, estaremos de novo em retorno, ao mesmo momento, ao mesmo ponteiro onde o relógio parecia ter parado]

um imenso abraço, Piscilla

Leonardo B.

ítalo puccini disse...

adorei as referências contidas nesse sobrou pra mim :)

começarei mestrado em floripa, em teoria literária, como aluno especial. disciplina da professora patrícia peterle, literatura e sociedade.

abraços!

Vanessa Alves disse...

Que delícia de texto.....um beijo !!!

BAR DO BARDO disse...

Melancolia... em mim dói.

Emília Pinto disse...

Alguma coisa sobra sempre para nós...alguma coisa sobra de nós para os outros; são pequenas coisas, parecem insignificantes às vezes, mas ficamos sempre com algum proveito daquilo que parece não prestar; alguém leva sempre algo de nós e um dia, pensando nisso, vai chegar à conclusão que lhe acrescentou algo de importante mesmo que na altura parecesse sem significado. Claro que de ti sobra sempre muita coisa e de tanta utilidade que aqui venho sempre para agarrar as sobras antes que outro se sirva delas. Um beijinho amiga e da próxima vez que te visitar já será do Brasil, de Guaratinguetá, onde vou passar um mês; amanhã bem cedo abalo. Fica bem amiga!
Emília

Cynthia Lopes disse...

Muito bom Priscila,
quem não tem um momento assim?
bjs

Gato Vadio disse...

Sobrou p'rá você, Pri amiga: mais um elogio, a prosa poética por excelência - não pela estrutura, mas pela emocionante contextualidade! Um abraço do Jorge.