quarta-feira, 12 de agosto de 2009

conto de cacos

Tenho a impressão de ter sofrido um grave acidente há alguns anos. Sinto que pequenos cacos de vidro estão ainda sendo expelidos da minha pele. Quando penso estar recuperada e sorrio, se passo as mãos em meu rosto, percebo nele pontos agudos, saltando-me de dentro. Por serem transparentes, ninguém observa. Mas a mim não podem passar imperceptíveis; me castigam. Às vezes, o desespero de me ver livre deles, me põe a esfregar o rosto, e deslizar as unhas, espremendo-o exasperada. Depois me deixo sangrar, e dou uma gargalhada aliviada. Esses pontos cristalizados sou eu me extravasando. Alguma coisa dentro de mim deve ter se partido, e ainda não cicatrizou. Está subcutaneamente inflamada. Já tentei produtos que fazem descascar a pele, e isso não trouxe os cacos à tona. Já espalhei cremes hidratantes, indicados por variados especialistas, mas ninguém parece entender o meu caso. Eu sou minha única salvação. Eu me compreendo e tenho complacência. Estou me curando constantemente. Vivo a me sabotar, a me encruzilhar, a testar minha capacidade de abstração. Se me distraio, me firo. Se me interrogo, me choco. Tenho estado assim, chocada. Esperando-me nascer. O que será que me aguardo? Que espera absurda me concentra? Estou focada, mas minhas lentes concêntricas embaçam diante da visão exacerbada da realidade. É que me dou conta de que não estou no centro. Sou periférica e inescrutável. Às vezes transbordo, mas quase sempre estou boiando. Planejo minha própria extorsão. Usurpo-me com frequência, tentando persuadir-me de que sou coisa outra. Tenho até uma identidade, números que me são determinantes embora não me revelem. Eu não os escolhi. E se tivesse sido me dada a chance de escolher? Eu me designaria em 5, 8, 2, 9, 0. Não saberia me ordenar. Eu não me obedeço, porque sei que não me condeno. Minha única punição tem esse aspecto de caco de vidro e é de mim expelida como um martírio, cuja dor é pungente, mas não me domina. Estou aberta à dor. Deixo-a entrar, revirar, procurar em mim o que quiser, e sair sem levar-me nada. Meu culto é meu sacrifício, e meu sacrifício é minha libertação.

8 comentários:

Vera disse...

Bravo, Bravo!!

Penso que todos nós temos caquinhos de vidro dentro no nosso interior. No entanto, alguns não sentem isso ou se sentem, ignoram.

Gosto da forma como você lida com as palavras ;-)


Beijos.

BAR DO BARDO disse...

Você é o cara, Pri! Seus textos são pungentes e delicados... E olha que eu sou difícil para a prosa!...

Bom dia!

Wanessa Martins disse...

Ai Pri, eu sinto que vc com as suas visões sobre si mesma, acaba captando o interior de cada um de nós. Todos temos nossos cacos, ou sobras ou pedaços que não entendemos. Como se fossemos muitos, muitos e perdidos! Adoro!

Emília Pinto disse...

Term certas alturas que parece isso mesmo: que alguma coisa nos feriu de tal maneira que ainda hoje sentimos que ficámos partidos por dentro e por fora; só sentimos pedacinhos de vidro espetando-nos em todos os lugares.., sentimo-nos despedaçados.., uns verdadeiros frangalhos. Todos os dias tentamos tirar esses pedacinhos pontiagudos..., usamos até aquele espelho de aumento que toda a mulher usa, mas.., nem assim..., muitas vezes não encontramos um sequer. Tentamos isso todos os dias...; lá vem um em que andamos serenas.., sem dor.., parece até que as farpazinhas saíram, mas..., de repente.., como que por mágica lá aparecem elas e de novo nos espetam...; sai uma gotinha de sangue.., uma lágrimazita..., um suspiro mais fundo. Não sabemos o porquê..., não encontramos solução e lá continuamos nós com a tal da pinça e o tal do espelho a tentar tirar mais um espetinho que teima em ficar. Pensamos sempre que um dia todos os vidrinhos saírão.., damos um bonito sorriso.., uma bela gargalhada, mas..., náo é verdade..., um ou outo espeto vai sempre aparecer. Gostei do texto, Priscila. Até breve e vamos lá continuando a tirar os espinhos que de certeza vão continuar a atormentar-nos. Um beijinho

Emília Pinto

lupuscanissignatus disse...

a dor

feita

em

cacos


:)



*abraço*

o mar e a brisa do prazer de aprender disse...

A dor penetra e não sai, ela se decompõe e renasce uma nova mulher; que talento para descrever emoção. Parabéns. Amei!!!!

sueli aduan disse...

que maravilha!!! que texto "verdadeiro", "forte", de uma delicadeza. adorei!!!!
parabéns

Clotilde Zingali disse...

eu.eu.eu.mas ando precisando aprender que a dor se vá sem me levar nada. ao contrário, tenho dado muita coisa pra ela :)) vou inspirar-me em ti. tenho que aprender :))um grande abraço, Clô