quinta-feira, 27 de agosto de 2009

de liberação

Tenho me concentrado na fundura da desconcentração. Tenho estado alheia às coisas que me cercam por estar profundamente tomada por elas. Como num sonho, em que ignoro parte do sonho e a outra parte não compreendo; e faço tantas perguntas que acabo não chegando a uma conclusão, porque nada é coerente. A vida é uma insuficiência infinita. É uma busca absurda e incessante. Estou, tal como a vida – e justamente ajustada a ela – estou pleonástica, hiperbólica e redundante. Eventualmente me surpreendo e rio comigo, mas é quase raro. Meu sorriso é raso como o resto do café que permanece na xícara até secar e enrijecer-se negro. Sou extra forte e aromática. Passeando pelos postes, pelas casas, pelos cachorros e pessoas que se arrastam. Eu sou isso que me largo e me apanho antes de cair. Não me permito amadurecer, estou sempre querendo me consumir. É um cedo tardio. É uma tarde ansiosa. Parece que chego antes da hora ou que perdi alguma coisa que era fundamental ao raciocínio lógico. Meu cálculo é absurdo. Quanto me subtraio ao final do dia ao lavar a louça! Quebro as alças das canecas, perco uma lasca do prato, entorto colheres tentando abrir potes de conserva. Tenho estado assim, perecível. Parece que vou morrer amanhã e preciso acontecer com urgência. Mas cadê o botão? Onde eu aperto? Estou comprimida. Estou cumprindo tarefas de outro para tentar atingir minhas metas. Que não sei onde as pus. Que não encontro senão quando estou indo dormir, e aí perco o sono querendo convencê-las de que são só minhas. Quando vencida me entrego ao sono, aquela coisa pensada se dissolve num bocejo e escorre feito baba. É uma repugnância: esses planos convexos, essa arquitetura envaidecida, esses projetos espetaculares de vida... para que um outro contemple, faça uns remendos e diga que é seu (e me faça acreditar nisso até mais do que eu, para abrir mão deles como se não os reconhecesse meus). Tenho estado assim, com as pernas dormentes, sem poder me mexer. Repouso dois dedos sobre o punho e não acredito em minha pulsação. Estou tão viva! Estou tão ativa! Como posso permitir que uma espera me contenha? Não, eu vou me liberar dessa missão. Vou me desarmar, me mandar pra casa, ver se eu tô lá na esquina, se faço verão. Preciso de foco, preciso de lentes, de contato com a civilização. Amparada pelos meus anseios, sou o pássaro de asas coloridas que empoleira-se na árvore sem encantar turistas. Preciso mostrar que belos são. Atingir a vida com o meu olhar e registrar, decodificar, produzir e me tornar esse mundo de coisas que eu quero ser para o mundo. Preciso é de precisão.

3 comentários:

Ju disse...

para mim
é tão preciso
o seu estado:

Sem estado

(como num pesadelo)

michelle disse...

preciso de um copo d'água e mais dos teus escritos.

ítalo puccini disse...

a vida é insuficiente, sim...

li sobre esse livro ali ao lado, do ruy espinheira filho, na revista discutindo literatura.
bem bom!